Pandemia deve trazer lições positivas para o mercado musical
Profissionais que vivem da música são condenados a viver em horários vampirescos por determinações de estabelecimentos e festivais, mas a quarentena criou debate para mudar isso
Durante inesperados e incontroláveis períodos como guerras e pandemias, diversas alterações sociais ocorrem, em um primeiro momento sob a justificativa da necessária adaptação para superar o momento. Muitas acabam incorporadas ao cotidiano das sociedades e, com o passar do tempo, a motivação inicial é muitas vezes desconectada do fato que a originou. É o caso dos horários de funcionamento das “Public Houses”, conhecidas por sua abreviação PUBs no Reuino Unido. São estabelecimentos licenciados para a venda de bebidas alcoólicas, muitos com música ao vivo, e que devem, necessariamente, observar os toques de sino. Na primeira badalada, envia-se a mensagem aos frequentadores que estão diante da última oportunidade para consumir. Quando o sino toca duas vezes, indica-se que o local encerrará suas atividades.
A peculiaridade advém do horário em que os toques de sino ocorrem, sendo que os PUBs britânicos devem fechar e seus clientes deixarem o local sem mais consumo até a meia-noite. Muitos podem não recordar que a prática teve início durante a Primeira Guerra Mundial, e a similitude com a história recente do Brasil certamente nos faz parar para pensar. A questão adveio de um ato sem muito debate em 8 de agosto de 1914, onde a House of Commons aprovou o “DORA – Defense of Realm Act” (Ato de Defesa do Reino), que outorgou ao governo poderes para submeter os civis às regras dos Tribunais Militares, censurar a imprensa, proibir narcóticos e comandar esforços econômicos para o esforço de guerra. Dentre as seis alterações advindas no curso da guerra, a norma também introduziu ampla gama de mudanças que marcariam a sociedade britânica, como o horário de verão, o racionamento, a ampliação dos poderes de polícia e questões peculiares como banimento de fogueiras, pipas e assobio em vias públicas. Especificamente no que se refere a redução do consumo de álcool e horários, em outubro de 1915 o governo britânico alterou o ato, impondo proibição de indivíduos comprarem bebidas alcoólicas para terceiros e modificou o horários dos PUBs, que antes funcionavam das 5h à 0h30, para 12h às 14h30 e das 18h30 às 21h30. Anos depois de encerrada a guerra e a motivação inicial, os horários de funcionamento dos PUBs permanecem restritos, mas uma das cidades mais cosmopolitas do mundo como Londres convive com tais horários de forma harmônica e sem qualquer problema nas esferas artísticas e sociais.
Os shows e apresentações ocorrem em horários compatíveis com a vida social, e aqueles que pretendem estender as noitadas devem se programar com antecedência, adquirindo bebidas em mercados e estocando-as em suas residências, locais onde as festas podem ocorrer, todavia, sem que as pessoas circulem alteradas pelas ruas, diminuindo-se consideravelmente os acidentes de trânsito e ocorrências decorrentes de excessos. O horário de funcionamento do metrô londrino também é compatível com o de encerramento dos PUBs, possibilitando o retorno de todos as suas casas. Por outro lado, os artistas que se apresentam nos PUBs conseguem ter horários compatíveis com suas famílias, pois não participam de apresentações madrugada adentro e deixam de viver em horários invertidos com o da sociedade.
Aqui no Brasil, ao menos em São Paulo, onde toco há mais de 25 anos, são raros os estabelecimentos que tratam os músicos, produtores, e profissionais do ramo com respeito – dentre os quais cito novamente o triunvirato notívago paulistano: Bourbon Street Music Club, o Blue Note e o Bar Brahma – encerrando as atividades em horários próximos à meia noite, respeitando os horários contratados. Com o advento da atual pandemia, por determinação legal, os bares e casas de shows brasileiros estão, ao menos por hora, obrigados a fechar em horários predeterminados e observando as restrições pandêmicas. Os shows voltaram a acontecer com limitação de público. A questão que se coloca é se não seria o caso de trazer ao debate os excessos e os desrespeitos aos músicos e aos inúmeros profissionais da música e da noite, que são sumariamente condenados a viver em horários vampirescos por conta da determinações de estabelecimentos e festivais que, injustificadamente, restringem as apresentações para altas horas das madrugadas, obstando-os do contato familiar, de um fluxo de vida parametrizado com o da maioria da sociedade. Não se trata de fazer do limão uma limonada, mas de encarar o que há anos se critica nos camarins, mas de forma coordenada consistente, mostrando que tal adaptação é possível, podendo ser um epílogo produtivo deste adverso 2020.
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