Nosso já combalido cinema nacional terá de se reinventar para uma ‘Retomada 2.0’
É necessário que o audiovisual brasileiro encare que essa atividade é um negócio como outro qualquer, que exige audácia, estratégia e risco; caso contrário, o Brasil não terá indústria de cinema
Há inúmeros indicativos no mercado do audiovisual brasileiro apontando que o nosso já combalido cinema nacional terá de se reinventar para, a partir de já, criar uma espécie de “Retomada 2.0”. Seria o equivalente ao ocorrido nos anos de 1990, quando, após a extinção da Embrafilme durante o programa de desestatização no governo de Fernando Collor de Mello, a produção de longas-metragens no país foi praticamente interrompida. É bem verdade que não existe, até o momento, qualquer sinalização oficial de que a Agência Nacional de Cinema (Ancine) passará por um desmonte, mas é sabido que a agência enfrenta sérios problemas, como já apontado nesta coluna e, não por coincidência, a Ancine aprovou somente um projeto durante todo o ano de 2020.
O hipotético fim da Ancine seria, de fato, um balde de água fria em todos os agentes do audiovisual brasileiro – produtores, diretores e mais toda a cadeia de profissionais envolvidos na produção de filmes e séries de TV. Mas é óbvio que não será o fim do mundo; ou não deveria ser. A história é velha, mas vale recordar para aqueles que não vivenciaram a época. Quando Collor fechou as portas da Embrafilme, em 16 de março de 1990, o longa “Dias Melhores Virão”, assinado por Cacá Diegues, estava pronto para estrear nos cinemas. O lançamento sofreu adiamento. Esta foi uma das últimas, se não a última produção assinada pela Embrafilme. A obra de Cacá chegou a ser escolhida pelo Brasil para representar o país na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar, mas nem sequer apareceu entre os indicados.
No ano seguinte, pouquíssimas foram as estreias nacionais nos cinemas: “Não Quero Falar sobre Isso agora”, de Mauro Farias; “Vai Trabalhar, Vagabundo II: a Volta”, de Hugo Carvana; “Matou a Família e Foi ao Cinema”, de Neville de Almeida; e mais uma meia dúzia de projetos sem grande destaque. E a situação ficaria ainda pior. Para se ter uma ideia, as edições do tradicional Festival de Cinema de Gramado nos anos de 1992 e 1993 não tiveram uma produção brasileira sequer na competição. Todos os filmes exibidos eram estrangeiros, de países como Argentina, México, Cuba e Espanha.
Até que em 1995 surgiu no cenário cinematográfico uma moça chamada Carla Camurati. Famosa atriz das novelas da Globo, Carla havia participado de apenas dois curtas-metragens para o cinema, mas mesmo assim assumiu o risco de explorar esse universo e dirigiu “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil”. Não só: Carla assinou o roteiro, a produção e, mais importante, cuidou praticamente sozinha da distribuição (a Warner Bros. acabaria entrando no circuito, mas só depois de um grande esforço solitário da diretora). Conta-se que Carla Camurati viajava o país com as latas do filme nas mãos negociando sua exibição com todos os cinemas que encontrava. O resultado dessa árdua tarefa é que “Carlota Joaquina” tornou-se o primeiro grande sucesso comercial daquela falida década de 1990 para o cinema brasileiro: no total, mais de 1,5 milhão de espectadores.
Foi justamente esse episódio na antologia do cinema brasileiro que marcou aquilo que se convencionou chamar de Retomada. Junte-se a isso uma mãozinha do governo, que também naquele instante começava a esboçar novos mecanismos de apoio ao audiovisual. Mas, para variar, sempre tendo em vista os bons e convenientes incentivos fiscais. A verdade, no entanto, é que a aventura protagonizada por Carla Camurati provou-se uma visão (neo) liberal da cultura de mercado. Carla teve iniciativa e postura de uma genuína empreendedora. Vale lembrar que, muitos anos mais tarde, o cineasta José Padilha seguiria pelo mesmo caminho. Em 2007, lançou o icônico “Tropa de Elite”, produzido e distribuído com recursos próprios, premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Apesar do grande sucesso, Padilha contabilizou enorme prejuízo por conta da pirataria. Para evitar o mesmo destino, Padilha cercou-se de novas estratégias quando lançou em 2010 “Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro”. Mais uma vez atuando com investimento particular, sem qualquer contribuição de recursos públicos, a produção que custou cerca de R$ 16 milhões teve uma arrecadação recorde de mais de R$ 100 milhões nas bilheterias. Além disso, foram mais de 10,7 milhões de espectadores nos cinemas, resultado que ultrapassou o recordista de público até ali, “Dona Flor e seus Dois Maridos”.
A definição dos exemplos de Carla Camurati e José Padilha é uma só: empreendedorismo, um conceito que inexiste em 99% dos realizadores no cinema nacional. É impossível, neste cenário atual da política e da economia do Brasil, cravar qual será o destino do audiovisual brasileiro. Uma coisa é certa: uma Retomada 2.0 se faz necessária, mas é de suma importância que o audiovisual encare de uma vez por todas que essa atividade é um negócio como outro qualquer, que exige audácia, estratégia e risco. E risco com os próprios investimentos, sem ficar a vida toda dependendo do providencial dinheiro público. Caso contrário, jamais o Brasil terá de fato uma indústria de cinema.
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