Com o avanço da vacinação contra a Covid-19, é ético permitir vida normal só para imunizados?
Uma situação em que uma parcela significativa da população escolhe não se vacinar também levanta debate sobre políticas públicas; ‘passaportes Covid’ é solução temporária
Conforme a vacinação contra a Covid-19 avança em alguns países, partes da vida normal vão voltando também. Nos Estados Unidos e em outros países que estão realizando a imunização rapidamente, existe um debate sobre como retomar atividades presenciais com segurança, conforme a vacina passa a estar disponível e acessível para todos. Nos EUA, por exemplo, a vacinação está desacelerando: muitas pessoas que já poderiam se imunizar não querem ou ainda não sabem se querem receber o composto. Como as crianças, na maioria dos casos, ainda não podem tomar a vacina, a imunidade de rebanho, que exige algo entre 80% e 95% da população vacinada, não deve ser atingida este ano, mesmo que não falte imunizantes. Uma situação em que uma parcela significativa da população escolhe não se vacinar cria questões de ética e políticas públicas que valem a pena discutir. No futuro, mesmo que não seja um futuro tão próximo, o Brasil pode se encontrar numa situação parecida.
Nos EUA, uma solução que alguns Estados e empresas estão adotando é oferecer incentivos para a vacinação. Uma forma de pensar sobre quais incentivos são éticos é ver se o incentivo apenas “compensa” a pessoa pelo trabalho de ser vacinada (como pode ser o caso de uma cerveja grátis, ou de um donut grátis, como oferecido por uma grande rede de lojas), ou se o incentivo é forte o suficiente para praticamente coagir a pessoa, como poderia ser o caso de uma soma alta em dinheiro. Se apesar dos incentivos o país continuar aquém da imunidade de rebanho mesmo com vacinas disponíveis, o que é provável, resta preservar a saúde pública restringindo os movimentos dos não-vacinados com o uso dos chamados “passaportes Covid”. Intencionalmente ou não, o desejo de escapar das restrições acaba virando mais um incentivo à vacinação.
“Passaportes Covid” servem tanto para promover a saúde pública, permitindo que apenas vacinados frequentem espaços públicos, ou que os frequentem com menos restrições, quanto para incentivar a vacinação entre aqueles que estão na dúvida, mas querem poder estar próximos aos outros sem máscara. O uso dos tais passaportes é controverso: Israel adotou, Reino Unido discutiu, mas até agora não adotou, e nos Estados Unidos não tem muito acordo. O governo federal norte-americano diz que não vai adotar, alguns Estados passaram leis proibindo seus próprios governos de adotar qualquer tipo de “passaporte”, outros estão pensando no assunto, e o governo de Nova York apoiou o uso de um aplicativo desenvolvido pela IBM. Seja como for, nada disso impede um bar ou restaurante de exigir a carteirinha de vacinação na porta, ou uma universidade de exigir a vacinação antes do início do próximo ano letivo em setembro, como está de fato acontecendo em muitas instituições dos EUA.
O conflito ético é inevitável: entre os que se vacinaram, pelo menos uma parte não vai se sentir segura em espaços públicos onde os demais não estejam vacinados, portanto, não vai voltar a frequentar espaços públicos normalmente se não houver algum tipo de verificação. Entre os que não querem se vacinar agora, alguns não querem se expor ao vírus e não vão voltar a sair, e ainda tem os que querem voltar aos espaços públicos normalmente sem ter que mostrar prova de vacinação. Não existe, portanto, nenhuma solução que permita a retomada da “vida normal” sem que nenhum grupo tenha algumas liberdades cerceadas. Dada a urgência absoluta de cortar as vias de transmissão do vírus, algum tipo de exigência de vacinação vai ter que existir até que se atinja a “imunidade de rebanho”. O debate fica novamente entre exigências mais coercitivas — como a obrigatoriedade da vacina para trabalhar, estudar, votar ou exercer outros direitos fundamentais — e exigências menos coercitivas, como a obrigatoriedade da vacina para ir a um restaurante, ou para assistir aulas pessoalmente quando a alternativa virtual está disponível, ou para frequentar o escritório quando o home office é uma opção viável. O princípio geral deve ser preferir o segundo tipo de medidas e tentar viabilizá-las sempre que possível, reservando as primeiras apenas para quando elas são a única opção para evitar novos surtos de Covid-19.
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