Setor privado pode auxiliar na vacinação contra a Covid-19, sem ninguém furar a fila

Dado o aumento do número de mortes, se as empresas puderem trazer mais doses ao Brasil e acelerar a imunização, a desigualdade dessa medida pode ser justificada em nome de reduzir a circulação do vírus

  • Por Mônica Magalhães*
  • 14/03/2021 08h00 - Atualizado em 14/03/2021 12h33
  • BlueSky
EFE/Joédson Alves Profissionais da saúde vacinam pessoas em posto de imunização drive-thru Profissionais da saúde vacinam pessoas em posto de imunização drive-thru em São Paulo

Em meio à crise do coronavírus, o Brasil está debatendo qual o papel o setor privado pode ter na compra e distribuição de vacinas contra a Covid-19. Uma nova lei recém-sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro regulamenta a compra de vacinas por entes privados. Outro projeto de lei propõe o Programa de Vacinação dos Trabalhadores (PVT), que permite que empresas comprem vacinas para imunizar seus funcionários. Ambos preveem doação de parte das doses ao SUS. Como qualquer proposta para ajudar a tirar o Brasil da atual emergência de saúde pública, ideias envolvendo o setor privado merecem consideração. Esses projetos levantam questões éticas que exigem cuidado, mas podem ser resolvidas. As propostas não regulamentam a venda de vacinas, que traz ainda outros dilemas éticos. 

Um problema ético pode ocorrer se compras de vacina pelo setor privado “canibalizarem” compras pelo setor público, enquanto a oferta mundial continuar inferior à demanda. Compras governamentais, por sua maior escala, conseguem menores preços. Seria ineficiente o setor privado competir pelas mesmas vacinas, pagando preços mais altos sem aumentar o número de doses disponíveis no Brasil; seria antiético efetivamente desviar doses do programa nacional de imunização (PNI). Se as leis regulamentarem as compras pelo setor privado de forma a resolver o problema da “canibalização”, surge o problema do “fura-fila”: trabalhadores vacinados por seus empregadores passariam à frente das categorias priorizadas pelo PNI. A lei já sancionada evita este problema, pois não permite que empresas distribuam vacinas até que termine a imunização dos grupos prioritários. Durante este período, todas as doses compradas devem ser encaminhadas ao SUS

O projeto de lei sobre o PVT também não deve permitir a distribuição de imunizantes fora dos grupos contemplados pelo PNI, mas, em sua forma atual, não proíbe explicitamente a distribuição gratuita de doses pelo setor privado durante a vacinação dos grupos prioritários. Alguns empregadores poderiam começar programas deste tipo ainda na primeira fase do PNI redes médico-hospitalares e farmácias, por exemplo, que empregam profissionais de saúde. Conforme os estados avançam para a segunda e a terceira fase, que incluem pessoas com mais de 60 anos e portadores de certas comorbidades, mais empregadores poderiam vacinar funcionários sem que ninguém fure a fila. Quando terminar a vacinação dos grupos prioritários, o problema do “fura-fila” deixa de existir.

Outro problema ético que surge se for permitida a distribuição gratuita de vacinas pelas empresas é a desigualdade de acesso que tais programas inescapavelmente introduzem: trabalhadores empregados por grandes empresas com condições de comprar vacinas e organizar sua distribuição, uma tarefa logisticamente complexa, terão o acesso facilitado e acelerado. Essa desigualdade persiste mesmo que a fila do PNI seja respeitada, e mesmo quando a vacinação dos grupos prioritários estiver completa. É um custo ético que deve ser minimizado tanto quanto possível e comparado às vantagens da proposta. As vantagens são importantes, no atual contexto emergencial. Além de trazer doses adicionais para o país e para o SUS, o envolvimento do setor privado permite que empresas ponham a serviço da imunização as informações que têm sobre seus funcionários (por exemplo, empregadores podem contactar diretamente os trabalhadores em cada nova faixa etária contemplada) e aproveita a capacidade das empresas de remover barreiras ao acesso de seus funcionários à vacinação (por exemplo, oferecendo-a no local de trabalho), de esclarecer dúvidas, e possivelmente de amenizar a hesitação daqueles que não têm certeza se querem se vacinar.

Dados o trágico e crescente número de vidas perdidas por causa da Covid-19, e os efeitos devastadores da pandemia sobre a saúde e bem-estar da população brasileira e sobre o sistema de saúde, se o setor privado puder trazer mais doses ao Brasil e acelerar a imunização de parte da população através de um programa bem regulamentado que respeite as prioridades do PNI e complemente o trabalho do SUS —, a desigualdade introduzida por essa medida emergencial pode ser justificada em nome de reduzir e interromper mais cedo a circulação do vírus.

*

*Mônica Magalhães (@monicaqfm) é doutora em ética e políticas públicas de saúde pela Universidade Harvard, e mestre em filosofia. A partir de hoje, vai escrever em domingos alternados sobre ética, saúde e sociedade.

  • BlueSky

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.