Sommelier de vacinas: entenda por que benefícios individuais não estão acima de objetivos coletivos
Se o plano daquele que rejeita certas marcas der certo, ele beneficia-se da imunização coletiva sem arcar com custos; se der errado, o país segue enfrentando a pandemia por mais tempo que o necessário
O Brasil está em um estranho momento em que as doses são escassas, mas, mesmo assim, podem ser esnobadas pelos chamados “sommeliers de vacinas”, que preferem postergar a imunização para receber a marca de sua preferência, mesmo sem contraindicação médica às que estão disponíveis. Em decisões sobre tratamentos médicos, é importante o paciente exercer sua autonomia e decidir aceitar ou não um dado tratamento com base em suas preferências e valores, riscos e benefícios. Mas vacina não é tratamento, é parte de uma estratégia de prevenção cujo maior benefício — frear a pandemia que tirou quase 2 anos da expectativa de vida dos brasileiros — só vai acontecer se grande parte da população se vacinar rapidamente. Só o fim da pandemia vai proteger quem não pode se imunizar por contraindicação médica, quem tem o sistema imunológico comprometido, crianças pequenas demais para se vacinarem e outros grupos vulneráveis.
Quanto mais protegida está a população (por vacinas, infecções anteriores ou outras medidas como máscaras e distanciamento social), menos “oportunidades” o vírus tem de infectar novas pessoas. O resguardo da população depende da porcentagem de pessoas protegidas a cada momento e do nível de proteção. Uma vacina com quase 100% de eficácia, aplicada a uma minoria, não vai frear a circulação do vírus — aí, sim, o grande benefício passa a ser a proteção individual. Fazia sentido pensar assim ao distribuir as primeiras doses, mas, se pensarmos assim permanentemente, já fracassamos no principal objetivo da vacinação. Já uma vacina 50% eficaz contra infecções, se aplicada rapidamente a toda a população, poderia parar a pandemia. Ou seja, se a efetividade das vacinas disponíveis é suficiente para proteger coletivamente (segundo a OMS, acima de 50%), mas não chega aos quase 100% que permitem a um indivíduo imunizado se sentir seguro mesmo com as pessoas à sua volta desprotegidas, isso deveria ser motivo para que todos que podem se vacinar o façam assim que possível. Se a vacinação avança lentamente, o vírus continua circulando, e há mais chances de novas variantes aparecerem. Pior, não se sabe ao certo quanto dura a imunidade por infecção ou por vacina. Se a proteção de grande parte da população começar a enfraquecer enquanto outra grande parte ainda está esperando pela marca de sua preferência, a imunidade coletiva não chega.
Na busca por maior proteção individual — ou na tentativa de evitar possíveis riscos de efeitos colaterais —, o “sommelier” reduz a proteção da população ao não se vacinar, priorizando os benefícios individuais às custas do objetivo coletivo. Quando os custos e riscos de se vacinar não são excessivos (como no caso de uma contraindicação médica), mas similares aos enfrentados pela maioria das pessoas vacinadas, o “sommelier” está abrindo uma exceção para si mesmo que, se adotada pela população em geral, comprometeria a proteção coletiva. Se essa estratégia der certo, ele pega carona na imunidade coletiva, beneficiando-se dela enquanto espera a vacina de sua preferência, sem arcar com os custos e riscos de colaborar. Se a estratégia der errado, uma parte grande demais da população faz o mesmo, e o Brasil (ou partes dele) continua enfrentando a pandemia por mais tempo do que seria necessário, sofrendo com a doença e com mortes evitáveis. E se der ainda mais errado, o “sommelier” pega e transmite a Covid-19 quando já poderia estar vacinado.
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