Fim da violência no futebol depende de ‘transformação cultural’ que vai do torcedor ao jogador
Para sociólogo, torcida única não diminuirá ocorrências de crimes ligados ao esporte; delegado defende um plano de ação conjunto com o objetivo de acabar com os casos
A violência no futebol voltou a ser pauta na imprensa esportiva nas últimas semanas. Além da Vila Belmiro ser fechada após atos de vandalismo de torcedores do Santos, o meia-atacante Luan chegou a ser agredido por membros de uma organizada do Corinthians enquanto estava de folga. A notícia mais trágica, entretanto, envolveu a jovem palmeirense Gabriela Anelli, morta após ser atingida por estilhaços de uma garrafa de vidro numa briga com flamenguistas. A vítima tinha apenas 23 anos. Em meio a escalada de episódios, a discussão sobre quais medidas devem ser adotadas pelas autoridades veio à tona. Para o sociólogo Rogério Baptistini, adotar torcida única em todos os estádios do Brasil, como é feito nos clássicos paulistas, não é a solução. “Uma verdade é que quanto mais a gente segrega, menos resolvemos a questão da violência. Gostaria de ter uma solução, mas ela não existe. Precisamos investir numa transformação cultural, onde todos os envolvidos, incluindo os agentes de segurança, participassem de uma cultural civil do esporte. Policiais, dirigentes, jogadores, profissionais de mídia… Isso precisa ser construído para médio e longo prazo. Enquanto não for feito isso, vamos continuar insistindo na ideia de que pessoas não podem conviver. Estaremos abolindo a ideia de sociabilidade. Pessoas que pensam diferente precisam conviverem juntos”, disse o professor da Universidade Mackenzie, em entrevista ao site da Jovem Pan. “Não chega a ser um erro. Eles [as autoridades] fazem o que é possível. Mas ao apostar nisso [em torcida única], afirmamos a tese de que estes seres humanos estão impossibilitados à convivência. Isso não é educativo. É preciso fazer ao contrário. A solução precisa ser de médio a longo prazo. Precisam participar de uma solução comum que visa a convivência. Segregar um grupo não é a solução”, complementou.
Um outro caso que ganhou bastante repercussão neste ano ocorreu em fevereiro, no bairro do Ipiranga, envolvendo torcidas organizadas de Palmeiras e Corinthians. Na ocasião, a Mancha Verde armou uma emboscada para a Gaviões da Fiel, que retornava de uma partida do Timão em São Bernardo do Campo, no ABC. Para Rogério Baptisni, porém, a violência do esporte não pode ser atrelada somente aos grupos uniformizados. “A ocorrência de violência entre torcedores no estádio é um fenômeno antigo. Vem antes das organizadas. Me lembro que na década de 50 houve um evento que ficou famoso e foi noticiado pelos jornais da época durante a final do Campeonato Paulista de 1957, entre São Paulo e Corinthians, no Pacaembu. Ficou conhecido como ‘O jogo das garrafas’. O São Paulo venceu a final por 3 a 1. Quando saiu o terceiro gol, o estádio virou uma praça de guerra. E não era época das organizadas. A violência, de certa forma, está sempre latente. O futebol mobiliza paixões que dentro de campo estão contidas por regras. Mas ainda, sim, os jogadores extrapolam as regras e vemos brigas entre os atletas e comissões técnicas. Essa paixão de torcedores transborda”, declarou.
Para o professor, também é elitista dizer que a violência no futebol está atrelada somente ao torcedor das camadas mais populares. “O hooliganismo, por exemplo, não é fenômeno de terceiro mundo. É da Europa. As autoridades, bem intencionados, decidem proibir torcida organizada imaginando que a violência será contida. Sou são-paulino. Frequento estádio e vou ao Morumbi com bastante frequência. Fico nas cativas vermelhas e mesmo lá, onde em tese é ocupado pela classe média, a violência está latente. Volta e meia, dependendo da tensão, é possível observar empurrões e pequenas agressões. Não há solução fácil para este tipo de fenômeno. Quem disser que extinguir torcida organizada, proibir vendas de bebidas alcoólicas, tirar garrafas de vidro, certamente é portador de boa vontade, mas não é essa a chave do enigma. Quando multidões se juntam para algo que mobiliza emoção, é como se uma faísca elétrica percorresse o ambiente. Todas estão reunidas em uma sociedade repleta de violência, por conta do desemprego, da economia. O que acontece no futebol não está descolado”, acrescentou.
O delegado César Saad, que comanda a Delegacia de Polícia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva (Drade) defende um plano de ação conjunto nacional, visto que o problema ocorre em todo o Brasil. “Precisamos de um plano de ação com envolvimento de Ministério do Esporte, Ministério da Justiça, polícias, Ministério Público, prefeituras e clubes. É necessário ter um conjunto de normas e diretrizes para combater. Não é apenas uma solução. É um conjunto de soluções para buscar diminuir e sanar esses casos”. Sobre a possibilidade de torcida única em clássicos nacionais, o delegado disse que é necessário um planejamento, mas que o confronto entre Palmeiras e Flamengo requer mais atenção. “No Estado de São Paulo, já existem as torcidas únicas para os clássicos estaduais. Não sei te responder de pronto porque isso demanda planejamento, mas neste caso de Flamengo x Palmeiras precisamos de mais atenção para os próximos jogos entre as equipes. É possível que tenhamos torcida única. Essa é uma opinião minha.”
Crime organizado
Após a confusão entre torcedores corintianos e palmeirenses, em fevereiro, as principais organizadas dos clubes paulistas divulgaram notas pedindo para que seus sócios não se envolvam em confusão. Nos bastidores, corria a informação de que o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior fação criminosa do país, determinou o fim das brigas entres as torcidas rivais. A informação nunca foi confirmada por nenhuma das partes. “Há algum tempo nós não tínhamos briga entre organizadas. A última aconteceu entre Mancha Verde e Gaviões. Nós fazemos um trabalho de acompanhamento, com reuniões periódicas com elas. Não temos nada de concreto sobre ‘salve’ do PCC. Prova disso foi a briga entre Palmeiras e Flamengo no último final de semana”, disse. Para Rogério Baptistini, não há dúvidas de que o crime organizado está presente nas organizadas. Porém, ele explica que elevar as organizadas como um único modo de penetração do crime é um erro. Isso existe e extrapola o problema da torcida. Aí já é problema de segurança. O futebol mobiliza as periferias da cidade. O crime organizado se infiltra onde ele encontra brechas. Ele está nas organizadas, mas também está entre as igrejas da periferia, nos pequenos negócios e até na política. Elevar as organizadas como único modo de penetração do crime é um erro. Ele está em todos os espaços da sociedade. Sobretudo nas periferias das grandes cidades. Isso já deixa de ser um caso de reconstrução cultural. As polícias precisam agir com inteligência”, finalizou. A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) e solicitou dados referentes a casos de violência no futebol. Entretanto, a pasta não respondeu até o fechamento da reportagem.
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