Com blocos de rua centenários, Olinda volta a fazer seu Carnaval democrático nas ladeiras
Sem cordas, abadás ou ingressos, centro histórico da cidade faz imersão de cinco dias na festa de Momo, aglomerando agremiações e alegorias da cultura pernambucana em pouco mais de um quilômetro quadrado
Dentre as cinco cidades brasileiras que realizam as festas mais tradicionais de Carnaval do Brasil, Olinda é a única que não é a capital do seu Estado. Apesar de, no passado, já ter sido a cidade mais importante política e economicamente de Pernambuco, e também uma das mais relevantes do Brasil colônia, hoje sua importância e legado estão mais relacionados à cultura e à manutenção da tradição. Talvez por isso a festa de Momo tenha características únicas neste lugar, com a eclosão anual de toda a música, dança, folclore e crença já criados na região, passando por referências indígenas, brancas (portuguesas e holandesas) e pretas. Em Olinda, a festa não para neste período do ano, com centenas de grupos musicais circulando pelas suas ladeiras históricas. Se um folião decide ficar parado em um único ponto do centro histórico, verá passar diversos blocos, não sendo necessário ir até eles. O Carnaval de Olinda não é conhecido por camarotes, cordas, festas com destaque para pessoas famosas ou com ingressos caros, mas por sua folia democrática, na qual todos têm o direito de brincar igualmente pelas ruas, do dia de abertura até a Quarta-Feira de Cinzas. É nesse contexto que existem alguns dos blocos carnavalescos mais antigos do Brasil, que contribuem para a valorização desse histórico, com fidelização sentimental da população e atração de turistas.
Em Olinda, não é comum o folião ouvir músicas da MPB ou de axé music, como em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador, mas sim maracatu, percussão, um pouco de samba e, principalmente, o frevo, seja com ou sem letra. Um dos principais frevos é o hino do bloco Elefante de Olinda (ouça abaixo), que, por sua ode ao próprio Carnaval da cidade, virou uma espécie de hino da festa inteira. Fundado em 1952, o Elefante de Olinda completa 71 anos neste Carnaval. A festividade de 2023 será um pouco mais especial para o clube do que o normal, pois será o seu primeiro ano com o título de patrimônio vivo da cultura do Estado de Pernambuco. “O Elefante nunca havia deixado de sair na rua. Às vezes, tem agremiações que, em um ano ou outro, por questões de organização ou de dinheiro, não sai, mas o Elefante nunca deixou. Somente na pandemia. Foi muito doloroso, mas, de forma simbólica, a gente continuou fazendo atividades online, como se fossem desfiles virtuais. Agora, é muito bom voltar a estar nas ruas. A gente vai sair com gosto de gás, com mais fantasia do que o normal, vai sair bem bonito”, afirma Célio Gouveia, membro da diretoria do Elefante.
A produtora cultural paulista Maiara Noda, 31, está pela sexta vez no Carnaval de Olinda neste ano e fala sobre a sua relação com a festa: “Já me emocionei muito vendo o Elevante [de Olinda] sair, com as passistas criancinhas frevando. É um conjunto de coisas de uma cultura muito popular e tradicional que vai tomando a gente mesmo. Apesar de uma desigualdade enorme que existe no Brasil inteiro, eu acho que é um dos lugares em que eu mais vi trabalhadores do Carnaval se divertindo também. Sei que é difícil para eles, mas vejo que existe uma paixão enorme de todo pernambucano pelo Carnaval. Acho muito especial o fato de ser um Carnaval em que, de verdade, vejo toda a família pela cidade, pelos bairros. Tem pessoas que curtem de todas as maneiras. Tem gente mais velha que fica dentro de casa, no quintal, só assistindo… Tem criança frevando, é muito tradicional”, comenta.
Maiara explica que foi convencida a ir para Olinda pela primeira vez por amigos que já tinham ido antes ou até morado em outras cidades do Nordeste, mas logo se desvinculou dessa influência e quis voltar por conta própria. “Eu vim pela primeira vez em 2014, e foi amor à primeira vista. Então, voltei em 2015, 2017, 2018 e 2019. Eu acho que é um Carnaval muito diferenciado. Por mais que existam Carnavais de rua muito especiais no Brasil, Olinda tem essa magia de você ser imerso no Carnaval. Se você fica em Olinda, você vai dormir com Carnaval e acordar com Carnaval. Você fica naquele ecossistema carnavalesco. É uma imersão mesmo. Além disso, culturalmente e artisticamente é muito maravilhoso. O frevo, realmente, como diria Alceu Valença, parece que entra na cabeça, depois toma o corpo e acaba no pé”, diz.
Além do Elefante, apenas mais dois blocos de Carnaval de Olinda possuem o status de “patrimônio vivo de Pernambuco”, o Cariri Olindense e o Homem da Meia-Noite, ambos com tradições que são remontadas desde o início do século passado. Na última quinta-feira, 15, o Cariri completou 102 anos de história. O bloco é conhecido como o “detentor da chave” que abre o Carnaval da cidade, sendo um dos primeiros a ir às ruas todos os anos, sempre às 4 horas da manhã do domingo de Carnaval. Em depoimento ao site da Jovem Pan, o diretor de comunicação da agremiação, Hilton Santana, relata a emoção de voltar a colocar a troça na rua, que neste ano tem o tema “E assim se passaram 100 anos”.
“A troça completou 100 anos em 2021, no auge da pandemia da Covid-19. Então, a gente não pode comemorar o centenário como tinha planejado. Nos guardamos, assim como todas as outras agremiações e manifestações culturais, tentando nos conectar com o folião pelas redes sociais, com lives e até com ações sociais e de apoio, de ajuda aos brincantes, aos fazedores de cultura, que ficaram numa situação difícil nesses dois anos. Nessa retomada, assim que as condições sanitárias se tornaram favoráveis, com protocolos de segurança mais flexíveis, já em maio de 2022, nós realizamos o primeiro arrastão [do frevo] em Olinda após a pandemia. Foi catarse total. Isso porque organizamos o evento em menos de sete dias, pegando os foliões de surpresa. O Cariri é o detentor da chave do Carnaval, que abre as festas em Olinda, então nada mais coerente a gente também ser a primeira agremiação a sair, a fazer a retomada do Carnaval. Foi um momento de muita alegria. Muitas pessoas se emocionaram e se reencontraram. A partir de então, fomos nos programando para o dia de hoje, para o que vai acontecer neste Carnaval”, diz Santana.
A turismóloga recifense Raquel Avelino, 28, que atualmente mora em Lisboa, Portugal, onde faz um doutorado, afirma que o Cariri é um dos blocos que não deixa de prestigiar. “O [bloco] Eu Acho É Pouco é incrível. Também gosto muito do Cariri. Para mim, eles são os melhores. O primeiro tem uma questão política, que eu acho importante que esteja presente no Carnaval, e o segundo é um bloco centenário, com uma tradição muito forte, algo que pesa muito para mim: o bloco se manter, manter a tradição e, mesmo assim, conseguir se renovar todo ano. Não é a tradição pela tradição, mas atualizada ao que vivemos hoje”, opina. Para participar da festa em 2023, Raquel conta que precisou fazer muitos ajustes financeiros em sua vida, economizando o quanto podia ao longo de 2022 para investir um alto valor em passagens de avião muito caras, em euro. Ainda assim, pondera que não faria diferente.”Foi difícil, quando mexe no bolso complica. É difícil se esforçar, fazer uma grande economia para se preparar. Não foi nada barato e, além disso, as coisas no Brasil também estão muito caras”, reclama.
Apesar de ter familiares no Recife e poder ficar hospedada na casa deles, a turismóloga optou por se hospedar em uma casa no centro histórico de Olinda, onde a folia acontece mais intensamente nestes dias. Segundo a prefeitura da cidade, 300 orquestras itinerantes foram contratadas para tocar frevo em toda a cidade durante os dias de Carnaval. Do total, 72 delas vão tocar exclusivamente na região onde Raquel se hospedou, no sobe e desce das ladeiras. “Eu brinco Carnaval de Olinda desde os 13 anos de idade. Desde então só deixei de vir quando não estava na cidade por algum motivo de trabalho, por exemplo, o que foi raro. Já faz parte de quem eu sou. Eu cresci no meio disso, indo para blocos, festas de Carnaval, toda a parte de preparação, as prévias. Tudo isso faz parte de um ritual que eu já estou muito acostumada, pensar nas fantasias, ir atrás dos tecidos, comprar, fazer a roupa, participar dos ensaios dos blocos, comprar as camisas das agremiações, incentivá-las. Isso faz parte do que eu levo no meu planejamento anual”, explica. “O Carnaval é muito importante e todo o imaginário dele, com o Galo da Madrugada ou o Homem da Meia-Noite, por exemplo, a cultura carnavalesca de Pernambuco, é tudo muito vivo e pulsante. A gente faz parte dessa cultura, ela só existe porque estamos aqui, não só quem faz, quem trabalha, mas também quem vem prestigiar”.
Citado pela foliã, o Homem da Meia-Noite é um dos blocos mais místicos de Olinda. O personagem homônimo que funciona como seu principal símbolo possui muito mistério sobre sua criação e história. Alguns boatos populares dão conta de que ele foi inspirado em um filme antigo. Outras versões apontam para um homem que existiu de verdade em Olinda, sempre muito bem-vestido e galanteador, que pulava janelas da cidade para se encontrar com suas amantes. Sua roupa, renovada anualmente, gera expectativa da população, mas só é revelada na hora do bloco ir às ruas, sempre à meia-noite do domingo de Carnaval. Além disso, o personagem não é um boneco gigante como os famosos que desfilam por Olinda, homenageando personalidades brasileiras como Ana Maria Braga, Galvão Bueno ou Elba Ramalho, mas um calunga, criatura mística do candomblé, filho de um orixá. Com sincretismo e muita fé, a agremiação, que completou 91 anos em 2023, nasceu no dia de Iemanjá, 2 de fevereiro, e respeita o ritual de sair sempre na virada do sábado para o domingo, na hora do medo, do lobisomen e de tantas outras lendas esotéricas.
O presidente do Homem da Meia-Noite, Luiz Adolpho, que assumiu o lugar do pai no bloco após a morte dele, destaca que o misticismo vai além, passando de geração para geração. “A história dele é muito forte. O Homem da Meia-Noite não é simplesmente uma agremiação carnavalesca, ele é diferente de tudo. Costumo dizer que ele é único. Ele tem uma história nos Carnavais, uma história mística, uma história religiosa. E entrou, definitivamente, nas casas das pessoas. Ele faz parte da vida dos pernambucanos. Hoje ele talvez seja uma das imagens mais fortes da nossa cultura e um patrimônio vivo do Estado. É algo que não pode desaparecer do cenário cultural de Pernambuco. E o que faz ele ser tão grande é a afetividade, o respeito à sua origem, sua tradição, ao que ele representa. Para mim, ele é parte da minha história, são 21 anos da minha vida, 11 anos da vida do meu pai. Já se foram 32 anos. Ou seja, em mais da metade da minha vida eu estive ao lado dele. Isso move emoções, reflexões sobre nossas vidas, sobre o papel que nós temos na sociedade, que clama por dignidade, por justiça social, igualdade. E ele representa tudo isso, porque ele fala para o povo, quando ele se curva, fazendo gentileza para as pessoas, que é coisa tão rara hoje em dia. O Homem da Meia-Noite traz muitos sentidos e significados. Por isso, ele é tão especial”, declara o presidente do clube.
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