Cancelamento de Carnaval de rua leva ao desespero instrumentistas e ambulantes em Pernambuco
Cadeia de produção do Carnaval de Recife e Olinda gera milhões em renda e afeta diretamente uma série de trabalhadores informais ao longo de todo o ano
As ladeiras vazias de Olinda (PE) no mês de janeiro denunciam que algo está fora da normalidade. A cidade costuma abrir as portas para foliões já em setembro, quando as prévias carnavalescas se iniciam. Semanalmente, o caldo de gente vai engrossando até chegar ao ápice. Só em 2020, 3,6 milhões de pessoas passaram pelo local nos quatro dias de festa, número nove vezes maior do que o dos 400 mil habitantes da cidade-irmã de Recife. As casas, alugadas para turistas, ficam empilhadas de colchões; as ruas, tal qual coração de mãe, vão aceitando quantos chegarem. O mar de gente parece inavegável, mas sempre cabe mais um. Nele, há os que curtem a festa e os que trabalham arduamente, gerando renda milionária para a cidade. A aglomeração, algo terminantemente proibido durante a pandemia do novo coronavírus, traduz o Carnaval de Pernambuco, que não tem data para ser realizado em 2021. O prejuízo de toda a rede de consumo por trás da folia afeta não só quem tem uma renda extra nos quatro dias de feriado, mas também os que têm toda a vida baseada em fazer a festa acontecer.
Como o primeiro caso de Covid-19 foi registrado no Brasil no fim do Carnaval de 2020, o maestro Carlos Rodrigues, de 55 anos, que há mais de 28 dirige a Orquestra Armação Musical, do bloco Homem da Meia Noite, demorou a se preocupar. Com o dinheiro arrecadado no período de maior movimento, ele tinha reserva para pagar contas por cinco meses, o suficiente para retomar os ensaios e assumir a regência em outras festas no meio do ano. Com o agravamento da crise sanitária, o maestro foi contaminado pelo vírus e os contratos de professor de música que ele assumira em escolas municipais foram cancelados. “O dinheiro ia acabando, eu me cuidando para não pegar de novo a doença e eu ia continuando. Ficou sem aparecer apresentação para nós”, recorda. Além dele, pelo menos outros 55 músicos trabalham na orquestra. Desses, cerca de 25 dependem exclusivamente da música. Todos, além do auxílio emergencial, precisaram de ajuda independente de outros blocos para poder arcar com as dívidas ao longo de 2020.
“Estou tentando me virar para poder sanar as dívidas que tenho, como conta de luz, de água… Estou tentando me virar e não estou conseguindo. Ando muito triste pelo fato de saber que não vai ter Carnaval. Mesmo que tenha após a vacinação, daqui há uns dois ou três meses, não vai ser igual a como sempre é”, lamenta. O maestro, que acima de tudo é folião e responsável pelos clarins que anunciam o início da festa, conta com a fé para que o período angustiante, nunca antes presenciado, finde. “Na virada do ano, o que eu mais pedi a Deus foi que tivesse Carnaval. Apesar da dificuldade, pela pandemia. Foi triste. Até hoje eu estou sentindo falta de tocar, de me apresentar e de ganhar dinheiro. Estou praticamente desempregado porque eu vivo de música“, recorda. Também na cidade alta, quem aproveitava a festa para fugir dos focos de folia e ainda ganhar uma renda alugando casas precisou voltar atrás.
A dentista Graça Cavalcanti, que mora às margens de uma uma movimentada ladeira no bairro do Varadouro, tinha fechado contrato com um grupo de amigos para alugar a casa no período da festa e precisou cancelar o negócio. Sem falar em cifras exatas, ela lembra que as casas da região, às vezes comprometidas para os foliões-inquilinos um ano antes do Carnaval, têm preços diferentes a depender da quantidade de espaço para os visitantes. “O valor [do aluguel] varia entre R$ 10 mil e R$ 20 mil, a depender das casas”, revela. A publicitária Helena Coelho, que anualmente organiza o evento “Casa dos Selvagens”, oferecendo abrigo, bebidas e limpeza diária para amigos no foco da folia, foi uma das inquilinas que precisou voltar atrás com o aluguel da casa. Ela quase não lucra com a organização, já que repassa o dinheiro arrecadado nos quatro dias de festa, cerca de R$ 22 mil, a um fornecedor de bebidas, duas diaristas e dois seguranças. “Além da nossa equipe fixa, acho que os mercadinhos próximos acabam sendo afetados. Além deles, acredito que as pessoas que passam vendendo gelo bem cedo para abastecer os isopores também vão sofrer com a falta do Carnaval, e, indiretamente, os ambulantes”, analisa.
A angústia que toma os trabalhadores do principal polo de Carnaval na cidade segue para outros bairros da capital. Dono de um bar e trabalhando há 11 anos como ambulante no bairro do Vasco da Gama, na Zona Norte do Recife, Malysson Carielo previa arrecadar R$ 3.500 com o trabalho de quatro semanas para compor a renda familiar no mês de fevereiro, mas vai ficar sem o dinheiro. “O primeiro bloco começa quatro semanas antes do Carnaval, que é o Bloco do Operário. Ele sairia no dia 17 de janeiro e seriam cinco semanas, mais ou menos, trabalhando até o Bloco do Ressaca [que ocorre no domingo após a festa]”, calcula. Além do lucro pessoal com a venda de bebidas nas ruas do bairro, o ambulante pagaria outros dois funcionários pela ajuda, criando uma cadeia produtiva extinta pela pandemia.
Ao longo de 2020, grupos independentes decidiram se articular com vaquinhas virtuais e transmissões ao vivo para garantir o sustento de quem depende da festa o ano inteiro para sobreviver. A troça Se Eu Flopar Me Beija, que sairia pelo sexto ano consecutivo nas ruas da cidade alta em 2021, foi um dos grupos que arrecadou verba virtualmente. “Um dos músicos veio falar pessoalmente com a gente, aí decidimos fazer uma vaquinha que seria uma forma de a galera que podia doar fazer uma soma legal e ajudar a orquestra em um todo”, lembrou um dos idealizadores do bloco, Célio Gouveia. Ao todo, quase R$ 4.000 foram levantados para a orquestra comandada pelo maestro Carlos, montante suficiente para algumas cestas básicas e o pagamento dos músicos que não tinham outros empregos.
Sem maior evento do ano, Olinda deixa de arrecadar quase R$ 300 milhões
Para Olinda, o Carnaval representa a maior arrecadação do ano. Segundo a secretária da Fazenda e Administração da cidade, Maria do Carmo Batista, as projeções para o ano de 2021 foram baseadas nos números do ano de 2020 e eram positivas. “No ano passado, tivemos 98% de ocupação da rede hoteleira de Olinda, 1% a mais do que em 2019. Nossa estratégia para o Carnaval de 2021 seria continuar esse crescimento, chegar a 100% de ocupação nos hotéis”, afirma. Em 2020, R$ 295 milhões foram movimentados. “Se a gente considerar que a cada ano o Carnaval cresce, com certeza em 2021 teríamos esse valor aproximado aos 300 milhões movimentados no município”, estipula.
Assim como outros municípios brasileiros, a cidade vive uma indefinição sobre possíveis datas para o Carnaval, mas afirma que seguirá o posicionamento do estado, principalmente em relação a diretrizes sanitárias. “Os números da Covid-19 vêm aumentando. Isso é um problema de saúde, e a nossa meta, nosso compromisso, é salvar vidas, salvar pessoas. A gente sabe que o período de Carnaval em Olinda é o evento mais importante que a cidade tem, gerando emprego e renda para milhares de pessoas, mas entendemos e acatamos a decisão do governo de cancelá-lo, porque a nossa prioridade é salvar vidas”, explica Maria do Carmo. Sobre as formas de auxiliar aqueles que dependem da festa para sobreviver, a secretária afirmou que uma série de reuniões será realizada com representantes de associações culturais da cidade para definir os tipos de auxílio ideal para cada um.
Ela lembra que, além das áreas culturais, setores informais, como o comércio, são diretamente afetados com o cancelamento da folia. “Para amenizar essas perdas, nós entendemos que é essencial a participação tanto do governo do estado quanto do governo federal com um aporte de recursos para os municípios que foram prejudicados com esse cancelamento. Olinda está dentro desse contexto”, afirma. Segundo Batista, o município sofreu com queda de receitas, de repasses do ICMS e de repasses do governo federal durante a crise. “Hoje talvez não tivéssemos condições de arcar com esse auxílio para essas entidades, para esse pessoal do comércio informal, mas a prefeitura está nessa luta junto com as entidades da sociedade civil e das entidades culturais.”
Pandemia ameaça a tradição
Seu Cabibiu, como é carinhosamente chamado Claudemilson Barbosa, um dos criadores da Troça Carnavalesca Mista A Porca, fundada em 1969, acompanhou religiosamente as multidões arrastadas pelo seu bloco, viu pessoas nascidas muito depois daquela década seguirem as tradicionais orquestras e hoje não sabe quando seu coração baterá mais forte. No grupo de risco da Covid-19, ele precisa lidar de forma forçada com o isolamento social que inviabiliza a festa. “Vai ser uma novidade para a gente e uma novidade maior ainda para eles. Apesar de nós, do frevo, nunca termos feito lives ou coisas do tipo, nós que somos mais jovens estamos acostumados com o mundo virtual. Eles, não. O pessoal com mais de 60 ou 70 anos tendo que lidar pela primeira vez na história com isso, com o fato de que não vai haver Carnaval de rua… Já pensou?”, questiona Higor Varejão, atual presidente da Porca.
A agremiação, como muitas outras no país, se antecipou aos anúncios oficiais das cidades e cancelou completamente a possibilidade de ir às ruas no primeiro semestre do ano, mesmo que haja vacinação em massa. “A gente passa basicamente o ano inteiro se organizando para colocar a Troça na rua, para botar uma orquestra completa. Porta-estandarte tem custo, camisa tem custo, toda essa organização leva um custo. E leva um tempo para se organizar tudo. Leva bastante tempo, na verdade”, afirma. O questionamento levantado pelos blocos, sejam eles tradicionais ou recém-ingressados na folia de Pernambuco, gira em torno do tempo necessário para que se organize um desfile.
O Galo da Madrugada, fundado em 1978 e considerado o maior bloco carnavalesco do mundo, também precisou cancelar eventos ao longo do ano e encara a indefinição sobre as datas com a certeza de que, mesmo que haja Carnaval, não será possível fazer uma festa nos moldes tradicionais. “Se o Galo fosse sair em fevereiro, a gente já estaria com tudo pronto. A essa altura, já teria mais da metade das bandas contratadas, artistas locais, artistas de fora, tudo já estaria em andamento, né? Porque quando vira o ano, já é Carnaval”, destacou, em dezembro, o presidente da agremiação, Rômulo Meneses.
Segundo a estimativa do bloco, cerca de 4.000 trabalhos diretos – entre idealizadores de fantasias, produtores e costureiras – são gerados anualmente. Esse número chega aos 40 mil com a contratação de seguranças e a movimentação de camarotes oficiais durante a festa, sem contar aqueles que trabalham de forma independente, vendendo bebidas e comidas aos foliões. “Tudo isso fica afetado, até mesmo esse pessoal autônomo”, lembra Meneses. A articulação anual que envolve a contratação de 30 bandas para tocar em trios elétricos será reduzida neste ano. O Galo deverá marcar sua presença no Carnaval em fevereiro com uma transmissão ao vivo pela internet. “Pelo que eu li, houve uma ou duas vezes que o Carnaval do Brasil não foi realizado, mas o Galo não existia nessa época. Então, para o Galo, realmente é um fato inédito”, afirma.
O município de Recife foi procurado pela Jovem Pan e afirmou, em nota, que o Carnaval é uma “pauta prioritária” pensada pelo governo de João Campos (PSB) desde o início do mandato. “O segmento [dos trabalhadores da cultura] vem apresentando sugestões, e a prefeitura estuda os caminhos possíveis para minimizar o impacto de uma realidade muito difícil, que afeta e aflige a todos, em especial o segmento cultural, mas também o comércio formal e informal, além do turismo. Após a conclusão das escutas, serão definidos os caminhos que levarão o Recife a celebrar sua cultura, com orgulho, saudade e apressada esperança em dias melhores”, diz trecho do documento.
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