JP Descomplica: Entenda o caso da Cervejaria Backer que levou a mortes em Belo Horizonte

  • Por Camila Corsini, Carolina Fortes e Giullia Chechia
  • 25/01/2020 10h06
Reprodução/Facebook Análises encontraram o dietilenoglicol na água da cervejaria e em 32 lotes de 10 marcas produzidas pela indústria, em especial a Belorizontina

Nesta quarta-feira (22), após determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Justiça, a Cervejaria Backer anunciou que está recolhendo todos os seus 82 lotes de bebidas. O órgão interditou por 90 dias todos os rótulos da empresa com data de validade igual ou posterior a agosto de 2020.

Até o momento, o número de suspeitos de intoxicação pela substância dietilenoglicol é de 29 pessoas* e quatro mortes foram confirmadas. A Backer afirma que “não sabe como aconteceu a contaminação das cervejas” e nega o uso do dietilenoglicol na fabricação.

Uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou que o Brasil é um dos países que mais consome bebidas alcoólicas no mundo, e a cerveja figura no topo da lista. A Backer era a maior empresa de cerveja artesanal de Minas Gerais e estava presente em cerca de 60% dos estabelecimentos, segundo o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Ricardo Rodrigues.

Perguntas e respostas

O que se sabe até agora sobre a situação da Backer? Como estão as investigações?

A Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais divulgou um boletim na última terça-feira (21) que afirma que o número de suspeitos de intoxicação por dietilenoglicol subiu para 22 pessoas. Quatro casos tiveram a intoxicação confirmada e 18 estão sob investigação.

Até o momento, quatro pessoas morreram. Três dessas mortes estão entre os 18 casos sob investigação. Uma das mortes, de um homem de Juiz de Fora, falecido em 7 de janeiro, teve a contaminação confirmada. De acordo com a secretaria, esse número pode aumentar.

Estão sendo considerados casos de outubro de 2019 até o momento, mas esse período também pode ser ampliado.

A Backer trabalha com uma hipótese de que a contaminação foi uma sabotagem e entregou um vídeo para a Polícia Civil de Minas Gerais analisar. Agora, a corporação entrou na segunda fase das investigações e os familiares e vítimas serão ouvidos como coleta de testemunhas para o caso.

As análises do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) encontraram o dietilenoglicol na água da cervejaria e em 32 lotes de 10 marcas produzidas pela indústria, em especial a Belorizontina.

Como as cervejas da Backer foram contaminadas?

Em entrevista coletiva, a CEO da Backer, Paula Lebbos, disse que “não sabe o que está acontecendo e pediu que os clientes não consumam a cerveja”. Ela negou que a empresa utilize o dietilenoglicol nos seus barris e garante que usa apenas o monoetilenoglicol, como um anticongelante.

A Backer contratou um perito individual para analisar lotes suspeitos de intoxicação. Nesta quarta-feira (23), a empresa assumiu “possível quadro de contaminação eventual” na indústria. No entanto, garantiu que a quantidade de dietilenoglicol não podia matar uma pessoas, pois era de 4,98 gramas por garrafa de 600 ml. “Pela proporção, um adulto de 70 kg teria que consumir por volta de 80 gramas dessa substância”, declarou Bruno Botelho, contratado pela cervejaria.

Entretanto, em entrevista coletiva o Superintendente da Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil, Tales Bittencourt, afirmou que para intoxicar e até matar uma pessoa de 70 kg, é necessário entre 1 grama a 12 gramas.

De acordo com a química Claudia Ayres, a forma como ocorreu a contaminação é um mistério, já que tanto o monoetilenoglicol, quanto o dietilenoglicol, são substância utilizadas somente no processo de fabricação da cerveja, ou seja, não ficam em contato direto com a bebida. “Desse modo, não teria risco de acontecer a intoxicação”, completa.

Já para o proprietário da cervejaria artesanal Araukarien, Thiago Carvalho, as formas de contaminação possíveis seriam “a mistura da substância na água no processo de resfriamento por uma falha na vedação; o vazamento do líquido refrigerante para dentro do tanque de fermentação devido a uma fissura no inox; ou realmente uma sabotagem”.

“Nunca houve casos anteriores ao da Backer no país e a hipótese de sabotagem não é descartada, porém há relatos sendo investigados de que a indústria química que fornecia o monoetilenoglicol teria enviado lotes misturados com o dietilenoglicol, sendo esse tóxico ao ser humano”, finaliza.

O que é o monoetilenoglicol e o dietilenoglicol?

O monoetilenoglicol é um componente químico próximo dos álcoois, explica a química Claudia Ayres. De acordo com ela, essa substância é próxima do etilenoglicol, utilizado em radiadores de carros e sistemas de resfriamento.

Já o dietilenoglicol é usado nos sistemas de resfriamento das indústrias de bebidas. “Ele é colocado no sistema de serpentinas para resfriar o material. O monoetilenoglicol e o dietilenoglicol tem níveis diferentes de toxicidade, mas o do segundo é maior do que o do primeiro”, diz.

Como o monoetilenoglicol e o dietilenoglicol podem levar à morte?

O toxicologista Álvaro Pulchinelli enfatiza que existe mais de uma forma pela qual o monoetilenoglicol e o dietilenoglicol podem levar à morte, sendo elas: o ataque das substâncias ao sistema nervoso, aos rins e a metabolização da droga.

No primeiro caso, o sistema nervoso central é um dos principais alvos da substância e uma vez atacado pode colocar a vida em risco. Durante as primeiras horas após a intoxicação o indivíduo percebe sinais como a alteração do estado mental e da coordenação motora.

Os rins são considerados os “grandes filtros do organismo” já que possuem a função de manutenção da quantidade ideal de água e excreção. Uma vez atacados pelas substâncias podem não funcionar em sua integralidade, desencadeando um quadro de insuficiência renal e, consequentemente, facilitando o acúmulo das substâncias tóxicas.

O último caso ocorre pela própria metabolização da droga que leva ao quadro de acidose, ou seja, a substância a ser metabolizada pelo organismo produz compostos de caráter ácido e o acúmulo desses ácidos no organismo é extremamente prejudicial.

Como as substâncias reagem no organismo? Tem como parar a intoxicação?

Segundo o toxicologista Álvaro Pulchinelli, as substâncias tóxicas são metabolizadas pelas mesmas enzimas que metabolizam o álcool comum — encontrado em bebidas –, mas sua modificação bioquímica leva à produção de outras substâncias tão tóxicas como os próprios etilenoglicol ou dietilenoglicol. Sendo assim, tanto estes novos metabólicos quanto as substâncias iniciais atacarão as células do sistema nervoso central, dos rins e acarretarão no acúmulo prejudicial de ácidos no organismo.

O neurologista Saulo Nardy explica que a substância oxalato — conversão do etilenoglicol quando está no organismo — é o que realmente leva à morte. De acordo com ele, o oxalato deixa o metabolismo ácido, agredindo vários órgãos e formando pequenos cristais nos rins e cérebro, que machucam e danificam, levando à insuficiência renal. “Depois, a acidez do sangue começa a lesar e machucar as paredes dos órgãos, em especial rim e cérebro, por isso chamamos de síndrome nefroneural”.

Pulchinelli alerta que, após iniciado o processo de intoxicação propriamente dito, ou seja, quando o agente tóxico já foi absorvido e está circulando pelo organismo, as únicas formas conhecidas para interromper a intoxicação são a utilização de antídotos, como o álcool etílico ou a retirada da substância via diálise; e medida e quantidades adequadas variam de acordo com cada quadro clínico.

Como essas substâncias são utilizadas na fabricação das cervejas?

De acordo com Thiago Carvalho, proprietário da Araukarien Cerveja Artesanal, o monoetilenoglicol é um fluído anticongelante utilizado no sistema de refrigeração das cervejarias — sendo necessário para o resfriamento da mistura e controle de temperatura dos tanques de fermentação e maturação. Sendo assim, não é usado como matéria prima da cerveja ou misturado ao seu conteúdo “em hipótese alguma”, reitera.

Thiago esclarece ainda que muitos estabelecimentos substituem a substância perigosa pelo etanol, uma opção não tóxica para o ser humano. Entretanto, os que utilizam o monoetilenoglicol e dietilenoglicol devem realizar frequentes inspeções dos equipamentos (banco de frio, trocador de calor e a vedação dos tanques) para evitar que a cerveja não se misture ao fluido refrigerante. Ainda sim é válida a execução de análises físico-química na bebida que será consumida para identificar e barrar possíveis contaminações.

O que aconteceu com a Backer pode impactar no mercado das cervejas artesanais?

O presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de Minas Gerais (Abrasel), Ricardo Rodrigues, afirma que não houve uma queda expressiva em relação à venda das cervejas artesanais. “O cliente tem migrado para outros rótulos, não só de produtos artesanais, mas também de cervejas mais comerciais.”

Segundo ele, cerca de 60% dos estabelecimentos cadastrados na Abrasel eram revendas da Backer, alguns exclusivos da marca. “Assim que aconteceu o problema, eles prontamente passaram para outros rótulos, até por orientação da própria empresa”, diz. Ele lembra que Belo Horizonte tem um grande histórico neste tipo de mercado, além de ser um grande pólo de produção.

Já para o proprietário da cervejaria artesanal Auraukarien, Thiago Carvalho, o mercado vem crescendo significativamente no Brasil nos últimos anos e a situação da Backer pode sim ter prejudicado as vendas destes produtos.

“Infelizmente estou ouvindo muitos boatos difamatórios sem fundamentos, vendo várias fake news e teorias infundadas nas mídias sociais, relatos e comentários de pessoas sem qualificação alguma para falar sobre o processo produtivo de cerveja. A falta de informações ou as informações mentirosas ou infundadas acabam influenciando as pessoas menos esclarecidas”, lamenta.

* Até o fechamento desta reportagem, dia 24/01, estes eram os números atualizados. O podcast foi fechado no dia 23/01.

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