Saiba como o tráfico de drogas atrai os jovens e o que pode ser feito para salvá-los do ‘pior trabalho infantil’

Especialistas afirmam que a preparação para o mercado é a maneira mais eficaz de evitar a exploração de crianças e adolescentes pelo crime: ‘Por que o menino de periferia não pode ser chefe de cozinha?’

  • Por Lorena Barros
  • 22/05/2021 09h00
MÁRCIO FERNANDES DE OLIVEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO Pessoa traficando droga em São Paulo De acordo com a Fundação Casa, 50,6% dos menores de idade do local cumprem medida socioeducativa por tráfico

Peões em um jogo que movimenta milhões de reais no Brasil, crianças e adolescentes são aliciados para o tráfico de drogas cada vez mais cedo no país. Uma pesquisa feita pelo Observatório de Favelas, organização localizada no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, mostrou que 13% das pessoas inseridas na comercialização de drogas ilícitas tinham entre 10 e 12 anos no ano de 2018, número duas vezes maior do que o registrado em 2017. Dados disponibilizados pela Fundação Casa de São Paulo apontam que atualmente há 5.269 jovens entre 12 e 20 anos cumprindo medida socioeducativa no local (aqueles que têm 18 anos ou mais estão cumprindo penas aplicadas quando ainda eram menores de idade). Desses, 2.670 foram apreendidos por tráfico de drogas, o equivalente a mais da metade das detenções. Uma série de fatores tornam os mais jovens vulneráveis ao crime e à exploração infantil com o trabalho no tráfico. Para especialistas em segurança pública, os caminhos para combater essa violência dobrada são muitos e vão da profissionalização dos jovens até a descriminalização das drogas.

“Verificamos que o crime de tráfico — no qual a pessoa recebe a droga, transita com a droga, vende a droga nos pontos de tráfico, transporta a droga de um lugar para o outro — tem por trás, normalmente, adultos, que são os grandes traficantes, aquelas pessoas que comercializam a droga e passam para essas crianças realizarem a prática dessa ilicitude. Eles fazem isso porque são pessoas mais vulneráveis, são pessoas que, segundo esse mercado, não respondem pela prática de um crime por serem menores de 18 anos, por serem inimputáveis. Então, em razão disso, por receberem medidas socioeducativas, infelizmente são muito utilizados por facções criminosas ou por outros criminosos maiores de idade para praticarem o ato da consumação tanto do roubo quanto do tráfico”, explica o secretário de Justiça de São Paulo e advogado criminalista Fernando José da Costa. Ele lembra que alguns dos jovens detidos por tráfico e por outros crimes também apresentam sinais de dependência da droga, o que gera a necessidade da ação de especialistas de áreas psicossociais para tratamento desses menores dentro da Fundação.

Com a detenção sendo um dos caminhos dos menores que se envolvem com o tráfico, o compromisso de espaços como a Fundação Casa é ressocializá-los para que eles possam ter chances de sair do mundo das drogas e receber oportunidades após cumprirem pena. Segundo o secretário, metade dos que voltam a ser detidos ou presos (quando maiores de idade) o fazem em até seis meses após deixar as dependências da fundação. “O trabalho do Estado não deve acabar com esses jovens no momento em que eles saem. Há grandes motivações que levam esses jovens a novamente praticar um ato infracional: falta de capacitação técnica, falta de empregabilidade, falta de orientação psicossocial e falta de orientação familiar. Nós estamos em um projeto para que todos os jovens, quando deixam a Fundação Casa, continuem acompanhados por esses trabalhos”, explica. Uma série de parcerias com a iniciativa privada para fornecer acompanhamento e capacitações (iniciadas três meses antes do término da pena dos detidos) são sinalizadas como pontos positivos para a ressocialização por parte do governo.

A coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Danielle Tsuchida, afirma que a profissionalização é um caminho importante, mas é necessário adequá-las às necessidades daquelas crianças e adolescentes. “A gente sabe que em um país como o nosso, que está com um altos índices de desemprego e uma população com muita dificuldade financeira, a gente precisa profissionalizar, a gente precisa preparar nossa meninada para o mercado de trabalho, mas com ofertas que sejam do interesse deles. Não adianta prepará-los para serem simplesmente ajudantes de pedreiro, manicure, faxineira. Sem menosprezar as profissões, mas com iniciativas que sejam do interesse deles. Por que um menino de periferia, um menino negro, não pode ser fotógrafo? Por que ele não pode ser chefe de cozinha? Por que ele não pode ser astronauta? Por que ele tem que sonhar pequeno?”, questiona. Ela lembra que além de um crime, o aliciamento de menores pelo tráfico de drogas é considerado pela Organização Internacional do Trabalho como “a pior espécie de trabalho infantil” na atualidade e explica que a motivação para entrada deles é variada: “A gente tem desde a necessidade financeira, com inúmeras famílias com necessidade de auxílio, e os jovens se sentem demandados a contribuir, mas também uma questão do consumo que leva o adolescente a desejar coisas que, muitas vezes, a família não consegue oferecer. O crime acaba sendo uma opção que aparece na porta”, analisa.

Uma pesquisa feita pelo próprio instituto em 2014 mostrava que, enquanto alguns jovens no mundo do crime encaravam os roubos como um “trabalho autônomo, aqueles que estavam dentro do tráfico comparavam a exploração como um “trabalho de carteira assinada”, que tem dinâmicas e carga horária definida, regras claras e um patrão na imagem do traficante. “Você tem que ter o dinheiro na mão, as famílias precisam do dinheiro. É um trabalho para eles, não é o que as pessoas veem como ‘está ali porque quer’. Eles estão no tráfico porque tem quem compre. A gente trata isso meramente como um crime, como um ato infracional, ele é aliciado pelo adulto muitas vezes porque se torna uma presa fácil e facilmente reposta. Na medida em que um jovem é preso, outro é posto no lugar, só que na verdade ele deveria ser cuidado, não simplesmente internado nesse lugar por um período de ressocialização, que é o que o juiz determina”, afirma. Dentro das políticas públicas, outro desafio observado pelo Sou da Paz para evitar que os jovens entrem para o tráfico, ou retornem para ele após um período de ressocialização, é a dificuldade de tornar a escola um espaço convidativo, e não excludente, contando com espaços de cultura e outras medidas sociais que tentem diminuir a desigualdade social.

Para o professor de gestão pública da FGV e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani, a falta de políticas de educação estruturadas para jovens da periferia é um dos motivos responsáveis por torná-los vulneráveis ao tráfico. “O que a gente percebe é um país que não cria educação, não dá oportunidade de educação para as pessoas e depois prende e mata. São [moradores de] lugares muito carentes, locais em que falta tudo, falta Estado… E os criminosos, muitas vezes, se transformam em modelo para essas pessoas. Além disso, é uma forma de dinheiro fácil, se você for pensar. É uma oportunidade de ganhar dinheiro”, afirmou. O especialista lembrou que a maioria dos jovens de periferia não se envolvem com a criminalidade, mas a vida do tráfico termina sendo opção para alguns. A articulação de políticas de segurança pública e políticas sociais, somadas às políticas educacionais, assim como o debate de temas como a legalização das drogas, são apontados como possíveis caminhos para solucionar esse aliciamento. “Acho que a legalização das drogas seria um caminho, principalmente da cannabis, a regulação do mercado de drogas e a presença firme do Estado nos lugares, dando educação, dando estrutura social”, analisa Alcadipani.

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