Desavença entre China e Estados Unidos tira mundo do conto de fadas e o insere na realidade 

Especialistas afirmam que tensão entre as potências mundiais acabou com a visão de que tudo seria mais pacifico após a Guerra Fria

  • Por Sarah Américo
  • 20/05/2023 10h00
SARAH SILBIGER/EFE/ EPA Joe Biden e Xi Jinping O presidente dos EUA, Joe Biden, em reunião virtual com o presidente chinês, Xi Jinping, na Sala Roosevelt da Casa Branca

Cada movimento, seja dos Estados Unidos ou da China, aumenta a tensão na região do Pacífico. Desde o começo de 2023, essa escalada do conflito já resultou na mudança de comportamentos de vários países, que estão alterando suas políticas como forma de se proteger de possíveis ataques. A Austrália, por exemplo, além de comprar submarinos de propulsão nuclear de Washington, também apresentou a maior reforma militar em décadas para contra-atacar as capacidades militares chinesas. Essa foi a primeira vez em 35 anos que o país tomou uma decisão como essa. No final do ano passado, o Japão também anunciou que está se armando. Tóquio anunciou o investimento de US$ 20 bilhões para os próximos cinco anos — o maior desde o final da Segunda Guerra Mundial — e se tornou o terceiro país no ranking de gastos militares, atrás apenas das duas maiores potências mundiais da atualidade. Recentemente, um acordo entre Estados Unidos e Coreia do Sul colocou lenha a mais nessa fogueira que já está em chamas. Os países assinaram um acordo de cooperação militar no qual o governo americano prometeu reforçar a segurança de Seul. Em troca, os sul-coreanos se comprometeram em não desenvolver seu arsenal mundial. Essa proximidade dos EUA com os países do Pacífico aperta, de todas as formas, o cerco em torno de Pequim, que, em resposta, começa a se armar cada vez mais. Essa escalada, apesar de merecer atenção e gerar instabilidade, tira o mundo do conto de fadas e o insere na realidade.

“Depois da Guerra Fria, com queda da União Soviética, houve um período que era de aparente pacificação. A China estava sendo integrada à economia ocidental capitalista. Parecia um mundo mais pacífico, pelo menos entre as grandes potências”, explica Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM e especialista em Ásia. “Mas o crescimento econômico da China e o fato dela ter assumido uma posição de rivalidade econômica com os EUA fez com que eles [países ocidentais] ficassem preocupados”, acrescenta. Essa competição, segundo o especialista, quebrou a visão de que ninguém poderia contestar a hegemonia norte-americana. “Com o fim da Guerra Fria, todos acharam que o mundo tivesse virado um local de paz. Agora, o que estamos vendo é o mundo real, que tem disputas”, observa Alberto Pfeifer, coordenador geral do DIS, grupo de análise de estratégia internacional da USP, adicionando um elemento para a intensa tensão em que vivemos hoje: a tecnologia. “Aquela região é o foco da disputa que envolve o domínio de setores de alta tecnologia. Temos questão que ainda são derivadas da Guerra Fria ou Segunda Guerra, e são atritos permanentes. São eles: conflito entre as Coreias; o Japão, que recebe bases americana e começa a se rearmar e pela primeira vez terá um porta-aviões no sentido ofensivo; situação de Taiwan; a Rússia encravada no norte da China e Japão.”

O mecanismo de preservação de Estados Unidos e China, seja pela segurança ou pela disputa pelo poder da hegemonia mundial, fez com que países próximos aos dois também procurassem mecanismos de defesa, até mesmo com armamentos nucleares. Segundo um relatório publicado no início deste ano pela ONG norueguesa Norsk Folkehjelp, as nove potências nucleares oficiais e não oficiais possuíam 9.576 ogivas prontas para uso, 136 a mais que no ano anterior. A capacidade destrutiva é equivalente a mais de 135 mil bombas de Hiroshima, diz o estudo. Esse cenário deixa o mundo mais instável. “Até um tempo atrás, tínhamos dois países que eram superpotências e que disputavam quem tinha mais ogivas. Contudo, havia uma responsabilidade. Eles sabiam que, se houvesse conflito, seria destrutivo”, fala Uehara, recordando o período da Guerra Fria. Ele enfatiza que, neste momento, o problema é que não há certeza sobre essa consciência, com mais disseminação do armamento, o que gera insegurança.

O alarde mundial fez com que o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, quisesse incluir o desarmamento nuclear na agenda da cúpula do G7, que está sendo realizada em Hiroshima, cidade japonesa que foi destruída por uma bomba atômica em 1945. Ele tem esperança de aprovar seu chamado Plano de Ação de Hiroshima, apresentado em 2022, que inclui um novo compromisso de não usar armas nucleares, transparência nos arsenais e novas reduções de armamento. No entanto, não são esperados progressos significativos nesta questão durante a cúpula, em um contexto de novas tensões com potências nucleares como Rússia, Coreia do Norte e China.

Mesmo com essa crescente tensão, Pfeifer acredita que a situação se encaminha mais para o não uso do que para o uso desses armamentos. Segundo ele, ter a arma não significa muita coisa do ponto de vista da eficácia. “Guerra é política, ela exite para alcançar fins políticos. Não importa que a gente veja uma recomposição de arsenal, o que importa é a capacidade de uso conforme cenário factíveis, que hoje está mais para o não uso do que para uso”, diz o especialista. “Estamos vivendo em um mundo de interdependência, o que faz com que seja difícil imagina que China e Estados Unidos sem depender um do outro. Se eles quiserem manter o padrão econômico e social que possuem hoje, precisam continuar negociando”, acrescenta. Apesar dessa dependência, Uehara teme que a relação fique cada vez mais tensa. “Há poucas iniciativas de ambos os lados para abertura de canal de diálogo”, alerta o professor da ESPM.

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