Por que a Rússia acena ao governo Talibã mesmo após passado marcado por guerra no Afeganistão

Relações entre Moscou e Cabul já foram delicadas, mas podem melhorar por motivos geográficos, comerciais e pelo desejo de mudar histórico bélico

  • Por Lorena Barros
  • 04/09/2021 10h00
EFE/EPA/GRIGORY SYSOEV/SPUTNIK/KREMLIN/ POOL Vladimir Putin de terno e gravata, gesticulando enquanto fala no Fórum Econômico Oriental Putin faz aceno ao Afeganistão após saída dos Estados Unidos da região

Com ares de despreparo, a saída dos Estados Unidos do Afeganistão foi o pontapé inicial para a retirada permanente de uma série de embaixadas estrangeiras do país asiático. Entre elas estão Alemanha, Reino Unido, Itália, França, Holanda e Canadá. Na contramão de nações ocidentais, o enviado especial da Rússia ao Afeganistão, Zamir Kabulov, descartou a retirada de funcionários da embaixada russa em Cabul e disse que o país recebeu garantias talibãs da segurança do espaço diplomático. Até o momento, o país de Vladmir Putin não reconheceu o governo da nação tomada de assalto pelos insurgentes após um avanço de cerca de 10 dias, mas diplomatas já se posicionaram a favor do estreitamento de laços com “qualquer poder” que comande o Afeganistão e contra o bloqueio de reservas financeiras internacionais que possam prejudicar o fornecimento de recursos para a área. O interesse na boa relação com os talibãs vai além de qualquer rivalidade histórica com os Estados Unidos, que ocupou a região por mais de 20 anos. O professor de relações internacionais da Universidade Anhembi Morumbi Jorge Mortean explica que essa aproximação ocorre por uma série de fatores que vão do interesse geográfico à oportunidade de “fazer diferente” do derramamento de sangue soviético registrado na década de 1980.

Moscou e Cabul: um passado marcado por intrigas

Para pensar no atual aceno russo aos talibãs é necessário lembrar do papel fundamental que as forças soviéticas tiveram na criação do grupo insurgente. Moscou e Cabul iniciaram uma relação conturbada ainda na década de 1970, quando em meio à Guerra Fria uma república de orientação socialista foi instaurada no país da Ásia Central. Na ocasião, a sustentação política de um estado laico que desconsiderava a pluralidade étnica e de fé do povo afegão foi frágil, o que abriu espaço para que os Estados Unidos financiassem a criação de um grupo radical e fundamentalista disposto a lutar contra as tropas soviéticas, conseguindo retirá-las da área no ano de 1989. “Os soviéticos retiram suas tropas e os talibãs se instalam dentro do território afegão com uma certa legitimidade no interior do país. O governo soviético acaba ruindo entre 1991 e 1992 e há um desgaste tremendo em termos de imagem, porque os afegãos começam a ver os soviéticos como os reais invasores”, explica o docente. Com feridas abertas e deixada de lado, a Rússia passa a assistir ao desenrolar dos anos seguintes à sua retirada.

O que ocorre a partir da tomada total de poder talibã no Afeganistão no ano de 1996 é popular na história mundial: o país abre portas para a fundação de grupos terroristas como a Al Qaeda e ganha as manchetes do mundo após não entregar o mentor do maior atentado terrorista já registrado nos Estados Unidos. Os EUA, que a princípio patrocinaram a criação do Talibã, instauram uma guerra ao terror e voltam ao país para consertar erros do passado, enquanto a Rússia, tentando retomar o fôlego após a queda do muro de Berlim, continua a observar à distância. “O que interessa para a Rússia é que pelo menos as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central que fazem fronteira com o Afeganistão estejam sob a sua órbita de influência, o que de fato ainda ocorre por motivos de dependência, logística econômica, saída ao mar livre”, explica Mortean. O que resta saber é quanto o trauma da experiência soviética no país influi na região 40 anos depois com uma nova Rússia, mais aberta ao capitalismo e se mostrando como potência econômica, e um novo Talibã, que mesmo sob um governo ditatorial ensaia boas relações com o mundo para sobreviver.

Interesses mútuos favorecem boa relação diplomática

O professor avalia que a diplomacia é um caminho de mão dupla que evidencia interesses estratégicos dos dois lados na situação atual do mundo. “O Afeganistão tem muito a contribuir para a Rússia como rota de acesso ao sudeste asiático, é o melhor corredor para alcançar a China e áreas na Ásia de extremo interesse dos russos, bem como fica a oportunidade para a Rússia tentar voltar ao país sob uma outra ótica, sob um outro pragmatismo. Como uma ajuda, e não uma invasão. Uma ajuda econômica, um suporte, um apoio político, diplomático, ao contrário dos anos 1980”, explica. Para ele, além da diplomacia comercial, a Rússia pode oferecer infraestrutura para a região afegã, que não tem qualquer saída para o mar e depende de fronteiras abertas para manter a economia ativa.

Além das benesses econômicas que podem ser proporcionadas pela Rússia, a oficialização de um “amigo” internacional pode melhorar a imagem dos talibãs com a própria população, abalada pelo trauma dos governos extremistas anteriores. “Os novos governantes talibãs em Cabul também não podem exigir muita coisa das suas próximas relações externas. Eles sabem que vão depender delas inclusive para serem legitimados como uma estrutura de governo daquele país pela própria sociedade”, analisa o professor, lembrando que em qualquer nação, inclusive nas eleitas democraticamente, relações exteriores podem moldar a visão que os cidadãos têm do governo. Ele lembra que o Talibã sabe que tem um grupo militar frágil e forças armadas de baixa projeção, o que pode o tornar menos seletivo na hora de escolher seus aliados.

Apesar dos acenos, Moscou ainda não deixou de considerar o Talibã um grupo terrorista, rótulo dado aos insurgentes há quase 20 anos. As especulações internacionais são de que não só a Rússia, como outros países do Oriente e do Ocidente estejam aguardando a definição oficial de um governo para dar os próximos passos diplomáticos direcionados ao país. O anúncio dos novos nomes, inclusive, pode surgir nos próximos dias. No momento, o Mulá Hibatullah Akhundzada, líder dos insurgentes, também é líder do governo do Emirado Islâmico do Afeganistão, nome que o grupo deu ao país após tomar o poder. Ele deve se tornar uma espécie de guia espiritual do país e dar espaço para um presidente, que pode ser Abdul Ghani Baradar, co-fundador do Talibã e chefe do escritório político dos insurgentes no Catar.

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