Exaltação a Maduro anula acerto de Lula ao retomar as relações entre Brasil e Venezuela

Especialistas destacam que aproximação com um país fronteiriço é extremamente necessária, mas petista vai além e escorrega ao tratar a ditadura venezuelana como uma democracia plena

  • Por Sarah Amério
  • 03/06/2023 16h00
WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO Lula e maduro Lula receve o ditador venezuelano Nicolás Maduro em Brasília

A volta da união entre Brasil e Venezuela após quatro anos de suspensão ganhou destaque nesta semana após o ditador Nicólas Maduro ir a Brasília e se reunir com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A retomada das relações chamou ainda mais atenção após uma fala do petista que classificou a ditadura na Venezuela como uma “questão de narrativa”. A declaração gerou um alvoroço, e o chefe de Estado brasileiro chegou a ser criticado pelo presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, e o presidente do Chile, Gabriel Boric, durante a reunião de líderes sul-americanos realizada na capital federal. Ambos disseram que não dá para fechar os olhos para o que acontece na Venezuela. Desde antes das eleições de 2022, que consagraram Lula, exite uma preocupação sobre as relações entre os dois países, com os mais pessimistas temendo que o Brasil caminhe para uma “venezuelização”. Essa exaltação do petista a Maduro, recebido com pompas pelo governo petista, até mesmo coloca em xeque a democracia brasileira. Para os especialistas ouvidos pela Jovem Pan, a retomada das relações é necessária. Porém, é preciso saber diferenciar o que é Venezuela e o que é Maduro.

“A partir do momento em que a gente faz fronteira com a Venezuela, é crucial que retomemos as relações porque temos uma série de questões para tratarmos e enfrentarmos: migrações, questões sanitárias, meio ambiente, povos indígenas, narcotráfico, comércio, além, claro, da dívida que o Brasil deve recobrar da Venezuela”, falou Regiane Nitsch Bressan, professora de relações internacionais da Unifesp. “O Brasil quer retomar as relações para tratar de todas essas questões, mas também pode tentar influenciar, de alguma forma, o país para que a democracia seja recuperada”, analisa a especialista, acrescentando que “isolar não ajuda em nada”. “A Venezuela não é só o Maduro, existe uma sociedade. Quando agimos como os Estados Unidos, que atingem diretamente a economia, a população sofre.” Ela também ressalta que, ao isolarmos um país, damos margem para que alguém ocupe esse espaço, algo que já vem acontecendo: a China está cada vez mais presente na região. O cientista político Leandro Consentino também vê com bons olhos a volta da união, porém destaca a importância de saber diferenciar o país de seu líder. “O presidente, na minha opinião, faz certo, no sentido de se aproximar da Venezuela. A gente não tem que romper relações diplomáticas porque o povo venezuelano merece o nosso respeito e há uma história de cooperação. Outra coisa é se alinhar ideologicamente àquilo o que representa Maduro, o chavismo e um regime autoritário”, pondera o especialista.

O cientista político Rui Barbosa segue pelo mesmo caminho: é perfeito que o Brasil tenha relações diplomáticas com Venezuela ou qualquer país do mundo. “Eventualmente, a gente pode dar algum ‘pitaco’ junto a esse país com quem mantemos relações. Podemos pressioná-los de alguma maneira quando eles ferem alguns princípios básicos. Porém, agir como Lula agiu, vai contra o seu próprio discurso em defesa da democracia. “A própria democracia brasileira pode ser fragilizada pela conduta do presidente no contexto internacional”. Carlo Cauti, professor de relações internacionais do Ibmec-SP, aponta que o problema não é a reaproximação, mas, sim, a exaltação. “A fala de Lula foi muito mais do que um erro político, foi um desastre de comunicação que demonstra qual a verdadeira natureza dessa governo do ponto de vista ideológico e cria uma repulsa, não só da população, como de países vizinhos que olham para o Brasil como um Estado que não só apoia, mas exalta uma ditadura sanguinária como se fosse uma democracia.” Em outras palavras, não é incomum manter relação diplomática com uma ditadura, especialmente se ela estiver na sua fronteira. Países da Europa fazem negócio com a China, por exemplo, mas nenhum dos líderes europeus exalta o governo chinês. Pelo contrário, aproveitam a visita para salientar os problemas dos direitos humanos naquele país. “É exatamente o oposto do que foi feito aqui no Brasil, quando o Lula falou que a Venezuela tem uma democracia. Então, se torna mais que um problema político, gera uma desconfiança dos outros parceiros, dos outros países possíveis parceiros e cria um temor de que o Brasil pode estar caminhando em direção a uma venezuelização, na economia e na política”.

Já Regiane, apesar de saber que a fala de Lula foi bastante sensível, esperava que algo assim fosse acontecer. “Se estamos convidando a Venezuela para uma negociação em nosso país e retomar o diálogo, esse início de conversa foi necessário e positiva. Obviamente que o Lula sabe das condições do país, mas nós não vamos conseguir fazer qualquer influência na Venezuela se não houver oportunidade de diálogo”, opina a especialista, lembrando que Maduro chegou ao país com um dia de antecedência, foi recebido pelo presidente e, diferentemente dos outros líderes que estiveram aqui, teve uma reunião bilateral. “Se a gente tem um inimigo do nosso lado, o ideal é saber o que ele está pensando, o que ele vai fazer, prever um pouco a situação. A Venezuela não é inimiga, mas ela está rompendo há bastante tempo com a democracia, com as regras do jogo democrático.” Contudo, essas falas equivocadas do presidente podem prejudicar o país e trazer desconfiança de potências internacionais que não sabem mais “que apito o Brasil toca”, como destaca o cientista político Leandro Consentino. Os gestos de Luila, na visão dele sinalizam “falta de compromisso com as democracias”, algo que o governo sempre fez questão de se diferenciar do anterior. “Na prática, se associa com questões autoritárias, desde que elas sejam sinais ideológicos próximos aos seus.”

Venezuela no Brics e moeda única?

Um dos pontos entre o encontro de Lula e Maduro foi o desejo de fazer com que a Venezuela entre no Brics, um cenário totalmente impossível na visão dos especialistas. Segundo eles, não tem nenhuma razão para que isso aconteça, visto que o grupo reúne nações que estão entre as maiores economias do mundo ou são muito grandes em termos geográficos. Segundo Cauti, a Venezuela não se encaixa em nenhum dos casos. Portanto, pensar no ingresso dela é algo absurdo. “Ela não tem nenhuma capacidade de projeção internacional, não faria nenhum sentido para o Brics admitir a Venezuela. É exatamente algo que a China e outros países estão sinalizando: não há nenhuma razão para que esse ingresso ao grupo aconteça”. Regiane Nitsch Bressan recorda que, quando a Venezuela entrou no Mercosul, não fez questão de atender todas as regras do bloco, o que fez com que ela fosse suspensa. “O que acontece agora é que, nesse momento tão efusivo, se fala da Venezuela entrar no Brics, sobretudo pensando na moeda paralela. Mas a gente sabe que são questões difíceis de serem concretizadas a curto prazo”.

Os especialistas também pontuam que essa moeda única defendida pelo presidente Lula é muito difícil de ser implantada porque necessita de harmonização das políticas macroeconômicas, ou seja, negociações de taxa de juros e de câmbio, explica a professora Regiane. Em teoria, é um projeto muito positivo se bem feito, mas envolve um empenho de todos os países envolvidos. Além disso, nos últimos anos, os países da América do Sul ficaram bastante afastados, o que faz com que a moeda única não deva se concretizar na próxima década. O professor Cauti critica essa vontade do governo brasileiro, chegando a dizer que isso mostra que “quem está ocupando nesse momento o Planalto não tem a mínima noção de questões econômicas básicas, pois uma moeda única é criada quando há condições macroeconômicas que são convergentes”. Um exemplo é o euro, tirado do papel após anos de união econômica, monetária e comercial. “Um processo longo que levou os países europeus a atuarem nas mesmas políticas macroeconômicas, com inflação no mesmo patamar, gasto público no mesmo patamar, desemprego no mesmo patamar etc.” Na América do Sul, isso seria impossível porque cada país atua com políticas macroeconômicas diferentes. “Não faz sentido nenhum propor algo do tipo para a maioria da comunidade porque faltam as condições de base para isso, então é algo que demonstra que, de fato, estamos nas mãos de uma pessoa que não tem a mínima noção do que está falando. Implementar algum tipo de política nesse aspecto poderia ser uma catástrofe para a economia brasileira.”

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.