Neutralidade do Brasil no conflito entre Rússia e Ucrânia reforça legitimidade internacional e autonomia

Decisão é tradição diplomática brasileira e um dos poucos pontos que faz com que Lula e Jair Bolsonaro se encontrem; ao se manter neutro, país consegue dialogar com todas as parte e estabelecer as pontes necessárias para negociações de conflitos

  • Por Sarah Américo
  • 05/02/2023 10h00
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Sergio Lima / AFP lula e olaf scholz Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (R) cumprimenta o chanceler alemão Olaf Scholz (L) durante uma reunião no Palácio do Planalto em Brasília em 30 de janeiro de 2023

Desde o começo do conflito entre Rússia e Ucrânia, que completa um ano no dia 24 de fevereiro, o Brasil assume uma postura neutra. O país condenou a invasão em algumas assembleias da Organização das Nações Unidas (ONU), porém, não assumiu posição para nenhum dos lados. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), até chegou a declarar que Volodymyr Zelensky, mandatário da Ucrânia, era tão culpado quanto Vladimir Putin, presidente russo, pelo que está acontecendo no Leste Europeu. “Esse cara é tão responsável quanto Putin, porque numa guerra não tem apenas um culpado”, afirmou em entrevista à revista Time’ no ano passado, e ainda apontou outros responsáveis, como Estados Unidos, União Europeia e a própria Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Nesta semana, durante encontro com o chanceler alemão, Olaf Scholz, Lula reforçou seu posicionamento e disse que não vai enviar munições para os ucranianos. “O Brasil não tem interesse em passar as munições. Somos um país de paz, portanto, não queremos ter qualquer participação, mesmo que indireta”, afirmou, acrescentando a “necessidade de encontrar a paz”. Scholz respeitou a decisão do petista, mas também declarou que o conflito entre Rússia e Ucrânia não diz mais respeito apenas à Europa, já se trata de uma questão global. O posicionamento foi o mesmo em conversa com Emmanuel Macron, presidente da França. Em um telefonema com o francês, Lula disse que o Brasil não fará parte das operações de guerra contra Rússia, mas ressaltou que está disposto a engajar de forma ativa na busca pela paz. 

Apesar da posição do Brasil não ser nenhuma novidade, pois o país sempre permaneceu neutro nos conflitos, existem opiniões que divergem da tradição brasileira, como, por exemplo, a do presidente do Partido Novo, Eduardo Ribeiro. Em sua conta no Twitter, ele escreveu: “A Alemanha pediu ao Brasil munição de tanques para enviar à Ucrânia. Lula covardemente negou. Não quer desagradar os russos. Nossa postura nessa guerra está errada desde início, e os livros de história vão nos reservar uma mísera nota de rodapé envergonhada”. A posição de neutralidade também já fez com que o país fosse chamado de “anão diplomático” por Israel, em 2014, após o governo brasileiro convocar o embaixador em Tel Aviv para consultas. A decisão de Lula abre margem para surgirem questionamento como: prestes a completar um ano da guerra, o Brasil deve continuar se mantendo neutro? Os especialistas ouvidos pelo Portal Jovem Pan dizem que sim. “Se olharmos as tradições diplomáticas brasileiras, podemos dizer que é correta. O Brasil se permitiu condenar a invasão na Ucrânia em algumas votações da ONU, mas não se permite ir além disso. Ou seja, ele entende que o melhor caminho para a paz não é dar armamento para a Ucrânia como o Ocidente vem fazendo”, explica o doutor em ciência política pelo IESP-UERJ Paulo Velasco, acrescentando que o país tem tradição de equilíbrio. “O Brasil evita abraçar, de maneira precipitada ou afobada, lados que estão em uma guerra da qual não participamos, pois entende que o melhor amigo para a paz é deixar aberta uma janela de oportunidade para mesa de negociações”. O especialista ainda fala que um acordo não é possível quando se assume uma postura de ficar condenando um dos lados e impondo uma série de sanções. 

Héctor Luiz Saint Pierre, professor titular de segurança internacional e resolução de conflitos e diretor do instituto de políticas públicas de relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP), afirma que essa posição brasileira faz com que o país seja capaz de se preservar como uma unidade política que permite dialogar com todas as partes e estabelecer as pontes necessárias para negociações. “No conflito entre Rússia e Ucrânia, que está envolvendo boa parte do mundo e promete ser uma guerra prolongada, o que convém para o Brasil e outros que são neutros é preservar seus interesses dentro do confronto, sem necessidade de tomar partido neste momento”, diz. Saint Pierre acrescenta que países neutros são importantes em meio a um conflito porque eles passam a ser utilizados “para terceirizar as negociações”, e por essa razão, não há riscos deles sofrerem retaliações. Uma prova disso foi a Alemanha anunciando um pacote de 203 milhões de euros, o que representa R$ 1,1 bilhão, para o Fundo Amazônia. “Eles precisam do Brasil e dos outros países que se mantêm neutros”, diz Saint Pierre.

O cientista político Paulo Velasco também defende que não haverá retaliações. “Esses países não estão surpresos com a posição brasileira. Eles gostariam que o Brasil estivesse apoiando mais enfaticamente sanções contra a Rússia e alinhados com suas posições, mas a neutralidade é uma tradição do país e não frustra expectativas”, afirma. “Os outros países sabem que o Brasil é um país que busca mais equilíbrio e até neutralidade para conflitos que não nos dizem diretamente respeito pela tradição de defender a paz e caminhos que sejam mais saudáveis”. Essa é uma tradição tão presente que acaba sendo um dos poucos pontos de encontro entre Lula e Jair Bolsonaro. “No governo Bolsonaro estava assim, com o Lula vai continuar da mesma forma. Isso mostra que a tradição precisa ser respeitada”, fala Velasco, pontuando que essa postura adotada pelo governo brasileiro “reforça nossa legitimidade internacional”.

“O mundo hoje é mais plural e multipolar, não tenho por que me submeter às vontades do Ocidente de maneira cega, então, manter o meu interesse é uma forma pragmática de agir”, explica o cientista político. “Em um mundo onde também tenho relações com a China, Índia, com os países do BRICS, é uma forma de demonstrar autonomia”. Agindo dessa forma, o Brasil não rompe relações com outros países, até porque ele depende do que eles fornecem, como, por exemplo, “Índia é uma potência tecnológica com crescimento vegetativo fantasístico e nuclear, e Rússia e China também possuem suas forças armamentísticas, sendo que os russos são os mais importantes”, fala o professor Héctor Luiz Saint Pierre. O cientista político Paulo Velasco acrescenta que “dentre os princípios da relação internacional do Brasil está o liberalismo, ou seja, se relacionar com todos, mesmo com aqueles que são muito diferentes”, sendo essa a razão que faz com que o país tenha embaixada na Coreia do Norte e Sul, e dialogue com Israel e Rússia ao mesmo tempo em que fala com Palestina e Ucrânia.

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