Saída dos EUA, medo de guerra civil e avanço do Talibã: entenda o que acontece no Afeganistão

País da Ásia Central vê avanço de poder fundamentalista derrubado pelos Estados Unidos há 20 anos e pode relembrar o 11 de setembro em meio a confrontos armados

  • Por Lorena Barros
  • 14/08/2021 10h00 - Atualizado em 16/08/2021 11h21
REUTERS/Stringer Soldados talibãs de moto fazendo ronda na cidade de Farah Cidade de Farah foi uma das ocupadas pelos talibãs; na imagem, soldados fazem rondas na região

Um mapa de poder que muda todos os dias. O Afeganistão, que tem pouco mais de 38 milhões de habitantes e ao longo de quase duas décadas ocupou manchetes por causa da guerra ao terror anunciada pelos Estados Unidos após os atentados do 11 de setembro, vê em menos de uma semana o avanço desenfreado das forças do Talibã ocupando cada vez mais províncias importantes do país. Neste domingo, 15, os insurgentes tomaram a capital Cabul e o presidente Ashraf Ghani deixou o país. Entenda a crise que abate o país em meio à tensão de possíveis confrontos armados, ao medo de um novo governo extremista e à possibilidade de uma nova crise migratória ao redor do mundo.

Quem é o Talibã?

Para entender o contexto atual do Afeganistão, é importante traçar uma linha do tempo e conhecer o papel do Talibã no país. O grupo de insurgentes foi formado ainda no contexto da Guerra Fria como um conjunto de guerrilheiros apoiados pelos Estados Unidos, Arábia Saudita e Paquistão para derrubar o governo afegão formado pela União Soviética após a invasão da nação pelas forças comunistas no fim da década de 1970. No final de 1980, os grupos organizados conseguiram expulsar os soviéticos do país. “Quando as tropas são expulsas, eles entram em guerra civil. Como havia vários grupos [de insurgentes], eles entram em competição e o Talibã acaba prevalecendo sobre os demais”, explica o professor do departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Reginaldo Nasser. O docente, que pesquisou por anos o comportamento do grupo para fazer um livro sobre ele, explica que a evolução dos insurgentes de um pequeno grupo armado até os responsáveis pelo poder do país na década de 1990 passa por uma série de atos de “justiça com as próprias mãos” e pela ascensão política facilitada por vácuos de lideranças deixados em um cenário devastado pela guerra.

Com a proximidade do fim da década de 1990, porém, o país passa a receber de volta alguns dos seus ex-combatentes, que foram perseguidos no exterior por supostas organizações de atos terroristas ao redor do mundo. “Muitos líderes importantes, como Osama Bin Laden e Ayman al-Zawahiri, passaram a ser perseguidos em países como o Sudão e voltaram para o Afeganistão em 1997, ficando lá com uma espécie de proteção e abrigo do Talibã”, recorda o professor. Em 11 de setembro de 2001, um dos maiores atos terroristas arquitetados por Osama Bin Laden mata quase 3 mil norte-americanos em uma série de atentados no território dos Estados Unidos. Em pouco tempo, a Casa Branca pede que o Afeganistão, até então comandado pelo Talibã, entregue o idealizador dos atos de terror, o que não ocorre. Em retaliação, no dia 7 de outubro de 2001, as tropas dos EUA iniciam a “Operação Liberdade Duradoura”, invadindo o país para derrubar o grupo.

“A derrubada foi rápida, durou cerca de dois meses. Depois disso, os EUA passaram para a fase de reconstrução de um novo governo”, explica Nasser. Passaram-se quase duas décadas da formação de um novo poder (articulado de forma que representasse as diversas etnias presentes no país) e da ocupação das tropas ocidentais, que também tinham membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), até que em fevereiro de 2020 o governo do presidente republicano Donald Trump assinou um acordo com o próprio Talibã, estabelecendo um cronograma para a retirada de todas as tropas do país. A estimativa é de que mais de dois trilhões de dólares tenham sido gastos, mais de 2,3 mil soldados norte-americanos tenham morrido e mais de 100 mil civis tenham sido mortos ou feridos ao longo de toda a guerra. Quando o democrata Joe Biden assumiu, de forma simbólica, ele prometeu que até o aniversário de 20 anos dos atentados nos EUA, que ocorrerá dentro das próximas semanas, todos os soldados teriam saído do país.

Avanço dos fundamentalistas não ocorre apenas pela saída das tropas

Apesar dos rebeldes terem aproveitado o momento de saída dos norte-americanos para avançar para capitais de províncias, as duas décadas de reestruturação do governo civil após a retirada dos insurgentes do poder foi marcada por uma série de períodos de avanço do Talibã em diferentes localidades do país, principalmente em áreas rurais. “Isso não é uma novidade, mas o fato é que com uma proposta de retirada não só das tropas americanas, mas de tropas ocidentais como um todo, eles têm uma motivação para ocupar mais espaços, principalmente os centros urbanos onde as forças de segurança do governo do Afeganistão não conseguem atuar”, analisa Samuel Feldberg, professor de Relações Internacionais da USP e especialista em conflitos internacionais. A busca pela retomada do poder somada à dificuldade que o governo tradicional tem de tomar conta de um país pobre com uma divisão de grupos étnicos tão acentuada auxiliam o avanço do Talibã.

“A dificuldade de governar é algo que também vem de séculos atrás, desde a criação do Afeganistão pelo império inglês ainda na época das disputas com o império czarista”, afirma Feldberg, que lembra que o interesse do Talibã sempre foi controlar o país. Essa motivação também é apontada por Nasser como um dos causadores do avanço tão rápido sobre o território. “Eles têm uma organização muito eficiente em forma de rede, articulações que vão de municípios de mil habitantes até as capitais. Eles não são mais bem armados do que os militares nem que a polícia do Afeganistão, mas são mais motivados e se organizam”, explica Nasser. Os insurgentes não negociam e sequer reconhecem o governo do Afeganistão e o fato de que os norte-americanos deixaram o país “às pressas”, sem fazer qualquer tipo de processo de transição, é apontado pelo especialista da PUC como problemático e contribuinte para a situação atual de avanço dos insurgentes.

Medo de governo severo faz com que moradores fujam

homens talibãs assassinando suspeitos de latrocínio

Punições severas são uma das características do governo Talibã no país. Nesta imagem, de abril de 2015, insurgentes punem com a morte três homens suspeitos de latrocínio na província de Ghanzi | Foto: REUTERS/Stringer TPX

Um levantamento divulgado pela União Europeia na última terça-feira, 10, após seis dias de avanço dos insurgentes, estimou que 400 mil pessoas tenham deixado as próprias casas para fugir das forças. Boa parte dos moradores do norte segue para o Irã e aqueles que estão em outras localidades buscam abrigo em Cabul, capital do país, que registra aumento na quantidade de famílias desabrigadas em praças e nas ruas da cidade. A fuga ocorre por temores de uma guerra civil e, de acordo com os professores, pelo temor da volta dos fundamentalistas no poder. “Eles impuseram condições muito duras para a vida da população civil, e essas condições foram abolidas quando o Talibã foi derrubado em 2001 e foi instituído um governo civil afegão. Hoje quem está fugindo está assumindo que o Talibã vai voltar a governar as áreas em que eles estão vivendo com essas leis fundamentalistas islâmicas que não respeitam as mulheres e obrigam os homens muitas vezes a se engajarem nessas forças que estão controlando o território”, explica Feldberg.

A fuga, porém, não é uma opção para todos e se torna mais fácil para quem tem dinheiro. “Há uma diferença de classe social muito forte. Mulheres de classe média alta estão indo embora, as mulheres mais pobres não têm o que fazer. Algumas delas dizem ‘o governo Talibã vai ser péssimo, mas a gente quer que não tenha mais guerra. Se isso significar que não vai mais ter guerra, nós queremos [o comando Talibã] porque não queremos nossos filhos mortos. Tem muita gente que não apoia o Talibã, mas também não é contra porque as pessoas estão exaustas de guerra”, analisa Nasser. Ele explica que o medo de retaliação com um novo governo assumindo também incentiva a fuga. Um apelo feito pelo próprio Afeganistão à União Europeia em julho para que migrantes não fossem repatriados foi atendido pela Suécia, Finlândia, Dinamarca e a França, Países Baixos e Alemanha até o momento.

Novas intervenções internacionais não devem ocorrer

Questionado por jornalistas na última semana, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não deu sinais de que voltaria atrás com a retirada das tropas do país da Ásia Central e afirmou que os afegãos deverão lutar “por si mesmos”. Uma das justificativas dadas pelo democrata foi de que ao longo de 20 anos de ocupação do território os EUA equiparam e treinaram tropas afegãs, o que tornaria o Exército local capaz de se defender. Com mais de 60% do país tomado, cidades se rendendo e o cerco à capital Cabul ficando cada vez mais próximo, porém, o argumento dos norte-americanos não parece correto. “Se as potências ocidentais estão assumindo que treinaram e armaram as forças de segurança do Afeganistão e que agora eles têm condições de se opor ao Talibã e isso não estiver correto, o resultado vai ser uma derrubada de governo afegão e uma retomada do poder do Talibã”, analisa o professor da USP.

Um dos principais pontos nas negociações de paz entre o país norte-americano e outros membros da Otan com as forças do Talibã era o pedido de que, ao contrário do que ocorreu no começo dos anos 2000, as forças insurgentes não abrigassem terroristas que articulassem ataques contra outros países. Se o grupo fundamentalista tomar controle total do país, cumprir essa promessa pode ser uma forma de garantir que as forças do ocidente não intervenham mais na política local. “Eu acredito que eles vão cumprir a promessa, não porque são bonzinhos, mas porque eles são pragmáticos. Provavelmente, o Talibã vai dominar um território ainda maior do que eles dominavam antes do 11 de setembro. Em 2001, eles eram reconhecidos apenas pela Arábia Saudita e o Paquistão, hoje já têm apoio da Rússia, do Irã, da China, além do Paquistão. Então começaram a ter uma ascendência internacional. No fundo, o que o Trump disse e agora o Biden reafirma em discursos é: ‘se não tiver um grupo que nos ataque, boa sorte”, afirma Nasser. Ele lembra, porém, que a disposição geográfica do país, com uma série de cadeias montanhosas, pode facilitar o esconderijo de alguns grupos, principalmente dos que teriam se camuflado ou escondido em países vizinhos durante a ocupação norte-americana.

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