Tomada do Afeganistão pelo Talibã traz risco de um novo 11 de setembro? Entenda

Especialista explica mudanças nas relações políticas mundiais que dificultam possibilidade das forças fundamentalistas articularem atentado semelhante ao ocorrido em 2001

  • Por Lorena Barros
  • 21/08/2021 10h00
William Kratzke/Estadão Conteúdo Torres Gêmeas em chamas Atentado do 11 de setembro foi ponto de partida para guerra ao terror dos Estados Unidos no mundo

Mesmo existindo desde o fim da década de 1980, o Talibã ganhou manchetes internacionais junto aos atentados terroristas de 11 de setembro, que mataram quase 3 mil pessoas no ano de 2001 nos Estados Unidos e lançaram ao mundo imagem das duas torres no centro comercial de Nova York desabando em uma cortina de fumaça preta. A partir daí, a guerra ao terror jurada por George W. Bush contra o Afeganistão e o poder que tinha abrigado a articulação dos ataques trouxe ao mundo os nomes da Al-Qaeda e as denúncias de violações de direitos humanos do governo baseado em uma ideologia radical e deturpada dos ensinamentos islâmicos. Com a saída das tropas norte-americanas do Afeganistão após vinte anos e o avanço rápido dos talibãs de volta ao poder, o mundo questiona quais as possibilidades de um novo atentado terrorista como o que abriu o milênio.

Talibã fez Afeganistão “voltar 20 anos” em 2021, mas tempos são outros

Não há quem duvide do fundamentalismo, do tolhimento de direitos das mulheres e das violações frequentes que o Talibã exercia no Afeganistão antes de perder o poder e agora, trazendo ao país a impressão de uma regressão de duas décadas. As relações externas da nação, porém, podem não ser as mesmas de 20 anos atrás, já que o cenário internacional torna mais difícil a existência isolada de um país, que precisa de aproximações, pelo menos de vizinhos, para investir em infraestrutura e ter bons fluxos comerciais, importando bens e dando vazão para os poucos produtos produzidos em território nacional. “O Talibã de hoje é muito mais pragmático. Ele sobrevive esses anos na clandestinidade se remodelando para serem vistos pela própria população afegã ou pelo menos tentarem fazer com que fossem vistos como a única solução viável de uma estrutura minimamente estável no país, apesar do seu radicalismo ideológico, da prática política muito autoritária, conservadora, ditatorial e necessariamente teocrática. Então, o que podemos esperar deles é uma certa observação. Eles estão observando como o mundo vai reagir perante esta retomada territorial que houve no país”, afirma em entrevista à Jovem Pan o professor de relações internacionais da Universidade Anhembi Morumbi, Jorge Mortean. O docente lembra do período em que o Talibã surgiu, financiado pelos Estados Unidos e outros países capitalistas para expulsar os soviéticos do Afeganistão no contexto da Guerra Fria, ainda na década de 1980, e explica que as décadas nas quais foram afastados do poder podem ter contribuído para uma mudança “política” atual.

“Naquela época, o Talibã não se enxergava um grupo político, hoje sim. Hoje pode ter uma analogia para dizer que ele virou um establishment, um partidário”, afirma. Ele lembra que dar abrigo a um novo (ou antigo) grupo terrorista e abrigar a articulação de uma ação como a que matou mais de 3 mil norte-americanos no atentado às torres gêmeas faria com que o país não tivesse mais a quem recorrer. ”Eles sabem que para eles também é um momento delicado em termos de relações internacionais para apaziguar os laços com o ocidente. Eles não estão em um momento de equilíbrio dentro da retórica diplomática daquele grupo terrorista, porque afinal de contas o mundo ainda considera o Talibã como um grupo terrorista”, analisa. Mortean lembra que a China e a Rússia se tornaram alguns dos países “líderes” no apoio aos insurgentes, mesmo com ressalvas, majoritariamente por um interesse geográfico na área, que, mesmo pobre ou sem qualquer acesso ao mar, é parte importante da rota da seda que o país oriental tenta retomar para ligar Pequim à Europa.

Armamento dado pelos EUA ao governo afegão pode ser usado em ataque?

Mesmo com forças afegãs sendo treinadas e equipadas pelos norte-americanos, para o especialista, o país não deve ter aporte bélico suficiente para ameaçar o mundo após o avanço das forças insurgentes. O equipamento deixado para trás, segundo o professor, não tem poderio suficiente para ultrapassar o território aéreo da Ásia Central e pode ser interceptado por países vizinhos. Segundo Mortean, a frota aérea do país é formada por alguns supertucanos da Embraer, que eram utilizados para reconhecimento e vigilância de território, e uma série de helicópteros norte-americanos. “Eles têm praticamente nenhuma capacidade de ataque. Os helicópteros norte-americanos portavam um ou dois mísseis, mas eles certamente não passariam da fronteira territorial afegã”, afirmou. O docente faz mais um comparativo com o período pós união-soviética e considera aquela como uma situação ainda mais delicada para o cenário internacional, já que o acervo bélico deixado pelas forças comunistas contava com caças russos supersônicos como o Mikoyan-Gurevich MiG-23 e o Sukhoi Su-17. Eles não foram utilizados para qualquer ataque no fim da década de 1990.

Por não ter qualquer saída para o mar, os armamentos navais não são viáveis para os insurgentes, fazendo com que, sem a opção ofensiva do ar e das águas, restem apenas as ameaças bélicas ao território nacional por meio de alguns tanques de guerra tomados pelos fundamentalistas após ganharem poder no país e armas que já foram utilizadas pelos rebeldes para ganhar território ao longo dos últimos anos, sendo quase sempre ostentadas em imagens dos novos comandantes afegãos na mídia internacional. “Algo que também devemos nos perguntar é de onde vem esses armamentos que após 20 anos fazem com que o Talibã ressurja tão ou bem mais poderoso do que em 1996 ou 2001”, afirmou Mortean.

Respostas internacionais são incógnitas

Ao reforçar sua posição sobre a saída das tropas do país em pronunciamento oficial, o presidente Joe Biden citou outras partes do mundo que concentrariam “células terroristas”, como a Somália e a Síria, e disse que o governo dos EUA tem capacidade suficiente para monitorar o Afeganistão de longe. Seja pelo trauma do 11 de setembro ou pelo avanço tecnológico das últimas duas décadas, as respostas rápidas a possíveis investidas criminosas são tratadas como case de sucesso por parte da inteligência do país. “Há possibilidade de monitoramento real? Sim. A tecnologia hoje é fantástica para isso. Como vão ou se vão reagir [a uma possível ameaça terrorista], isso já é outro assunto. Tudo também depende de dentro das relações internacionais dos acordos das organizações militares que os Estados Unidos fazem parte”, explica o professor, citando a “disposição política” do país como essencial para determinar uma retaliação ou não ao Talibã.

Diante das incertezas, o que resta para os especialistas é continuar a analisar a linguagem usada pelos fundamentalistas nas primeiras semanas de retomada do país e especular sobre o significado de cada uma das ações dos talibãs, que ao mesmo tempo em que conversaram com repórteres mulheres de canais como a CNN Internacional, perseguiram e mataram parentes de um jornalista alemão que seria crítico ao governo. “Se eles voltarem com uma política de medo, de amedrontamento, eles vão enfrentar resistência da população. Parece que agora os Talibãs aprenderam que têm de ceder um pouco politicamente para continuar no poder’, opinou o professor. Mortean destaca alguns sinais “apaziguadores” dos insurgentes, como conversar com uma jornalista mulher na mídia local pouco após tomar a nação, sinal de que ou eles mudaram a retórica ou estão em busca de comprar a confiança da população que não os elegeu.

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