Violência com armas de fogo nos EUA cresce, vira ‘terrorismo interno’ e gera alerta
Nos primeiros cinco meses do ano, foram registrados 203 tiroteios em massa e mais de seis mil pessoas já foram vítimas dos ataques; jovens têm sido um dos principais perfis de atiradores
Em dois dias, dois casos de violência com armas de fogo ganharam destaque nos Estados Unidos: o ataque a um supermercado em Buffalo, no último sábado, 14, e o tiroteio em uma igreja na Califórnia, no domingo, 15. Entretanto, apesar desses terem sido os casos que repercutiram, não são isolados. A violência com arma de fogo nas cidades norte-americanas já está instalada na cultura do país. De acordo com dados do Gun Violence Archive, um grupo de pesquisa que cataloga todos os incidentes de violência armada nos EUA, até o dia 16 de maio foram registrados 203 tiroteios em massa e 6.296 pessoas morreram nesses ataques. Thaís Dória, especialista em relações internacionais, fala que em 2020, 1,5% das mortes por arma de fogo decorreram de mass shootings (tiroteio em massa).
Um relatório das autoridades americanas apontou que em 2020, primeiro ano de pandemia, foram 19.350 homicídios, um aumento de quase 35% em relação a 2019, que fez a taxa ficar em 6,1 a cada 100 mil habitantes. Um cenário como esse não acontecia há 25 anos. Para o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC), “essas mortes representam um problema de saúde pública persistente e significativo”. Os dados de 2022 tendem a seguir o mesmo caminho em decorrência da quantidade de casos que já foram relatados. O doutor em relações internacionais Igor Lucena fala que para entender o atual cenário é preciso voltar no tempo, porque existem dois fatores que devem ser levados em consideração. “O primeiro é o preceito constitucional em defesa das armas dentro da história americana. O segundo é que os EUA têm uma grande disparidade social”, explica.
Com a pandemia de Covid-19, esse problema se agravou, o que pode ser a explicação para que a quantidade de crimes cometidos por jovens, como o de Buffalo, seja maior. Durante dois anos, as pessoas ficaram em casa para se proteger da doença, e, com isso, aumentaram o consumo de internet. Orion Noda, especialista em relações internacionais, fala que o constante uso das redes sociais atrelado aos problemas sociais dos EUA influenciam os jovens a adotarem um comportamento mais radical. Entretanto, ele cita um outro motivo, o fato da extrema-direita estar em ascensão. “Política nos EUA leva muitos jovens a engajarem nas redes sociais e entrarem em discussões e fóruns que promovem a política de supremacia branca”, explica. Ele também fala de uma teoria da conspiração que anda circulando nesses grupos e crescendo cada dia mais, o great replacement (grande substituição) – que diz que a população, cultura e valores brancos estão sendo substituídos pelos valores dos negros, pardos e outras minorias.
As vítimas de arma de fogo
Apesar de tudo começar como uma brincadeira nos grupos, muitos jovens se sentem na obrigação de fazer algo para impedir essa grande substituição e, com o fácil acesso a armas e os problemas sociais aumentando, “eles acham que estão cometendo um ato heroico quando praticam uma violência”, explica Noda. Igor Lucena complementa esse pensamento, mas faz uma contextualização mais levada para o lado sociológico. “O jovem, de maneira geral, é muito mais suscetível a ideias e costumam ser menos críticos”, diz. Contudo, esse não é nem o maior problema em questão, eles têm um enorme desejo de pertencer a um grupo e essa “autoafirmação na sociedade pode fazer com que eles sejam as maiores vítimas da radicalização e transformem pensamentos em atitudes radicais”, acrescenta.
Thaís Dória informa que “38% das vítimas de homicídios cometidos por armas de fogo são, em sua maioria, homens jovens e negros, e estes representam 2% da população total do país”. O relatório divulgado pelo governo dos EUA aponta que o índice subiu consideravelmente entre esses grupos e que o aumento foi maior em condados com altas taxas de pobreza e populações com minorias étnicas”. O especialista em programas de prevenção de violência do CDC, Tom Simons, associa o crescimento à pandemia de Covid-19. “Eles incluem mudanças ou problemas nos serviços e na educação, isolamento social, condições econômicas como perda de emprego, instabilidade habitacional e dificuldade em arcar com despesas relacionadas à pandemia”, explica Simons. Thaís complementa dizendo que a “aceitação generalizada do uso de arma para proteger-se, agravada pela cultura de vingança, provoca na população o sentimento de vencedores x perdedores”.
Não é só a quantidade de homicídios com arma de fogo que está em alta nos Estados Unidos, outro dado que também impressiona é o crescimento de suicídios. Foram registrados 24.245 no ano passado e, de acordo com o Gun Violence Archive, estima-se que 8.052 suicídios já tenham sido realizado neste ano. Mas, nesse caso, o perfil muda. Segundo Thaís, em sua maioria “acontecem entre homens brancos e mais velhos” e “em 2020, 79% dos assassinados e 54% dos suicídios foram por arma de fogo”. Ela também relata que o aumento de casos de homicídio foi puxado pelo crescimento da violência doméstica. “De 2019 para 2020, houve um aumento de 25% em assassinatos feitos por
parceiros íntimos, usando armas de fogo”, aponta.
Os atos radicais não são cometidos apenas por jovens, são várias as pessoas que cometem esses atos. Como o atirador no metrô de Nova York, que deixou 10 pessoas baleadas. O autor foi um homem negro de 62 anos. Essa diversidade faz com que seja complicado tratar esse problema que o presidente dos EUA, Joe Biden, considera como uma epidemia. “Não existe um padrão”, fala Lucena, acrescentando que, diferente do terrorismo internacional, não dá para traçar um perfil para esse tipo de radicalismo. “Tem pessoas de todas as classes, bairros, cores, raças, famílias que passam desapercebidas pelas forças de segurança e checagem. E isso torna tudo mais complexo”, complementa o doutor em relações internacionais.
Cultura armamentista dos Estados Unidos
Os Estados Unidos, junto ao México e à Guatemala são os únicos que garantem constitucionalmente o direito à posse de armas de fogo. Essa cultura armamentista é muito forte, tanto que existem mais armas na mão dos civis do que população. De acordo com Thaís, “são aproximadamente 400 milhões de armas para 333,1 milhões de habitantes”. Só no ano passado eles bateram recorde e venderam 21 milhões de armamentos. Ao mesmo tempo em que a violência aumenta, as vendas também disparam, porque essa é uma forma que as pessoas veem como o melhor caminho para se defender. Prova disso é que há um aumento no investimento das campanhas estadunidenses para proteger o porte de armas e a desregulamentação da posse. Thaís relembra uma pesquisa realizada pela Gallup Poll para saber quais medidas deveriam ser adotadas para prevenir o mass shooting nas escolas estadunidenses e “42% dos entrevistados argumentaram que os professores/ou funcionários do colégio deveriam receber treinamento para usar armas de fogo e estarem em posse das mesmas durantes o trabalho.
Desarmar os estadunidenses é algo muito complicado, uma vez que tanto os republicanos como os democratas são a favor e defendem fortemente os direitos constitucionais de defesa, entretanto, os especialistas apontam a necessidade de um controle maior para posse de arma. Lucena fala que, por mais que uma fiscalização mais rígida seja o caminho ideal para tentar amenizar o crescimento da violência, ela “é vista por muitos americanos como a retirada do direito de defesa”. Orion Noda acrescenta que pensar nesse controle é “utópico, porque até os Estados democratas não combatem as leis armamentistas”. O especialista ainda ressalta que cerca de 50% dos Estados dos EUA não requerem licença para porte de armas. “A pessoa pode chegar e comprar. Qualquer pessoa tem acesso, mesmo em lugares que precisam dessa licença” já que a fiscalização não é constante.
Lucena diz que essas violências com arma de fogo já são consideradas terrorismo interno e “estão se tornando mais complicadas de lidar do que o próprio terrorismo internacional”. Ele reitera o pensamento de Biden e fala que essa situação está se tornando uma “epidemia como foi a de drogas na década de 80”. Diante desse cenário, o doutor em relações internacionais fala sobre a necessidade de “uma reforma profunda da nação e conscientização da população de que um controle rígido não significa retirada dos direitos de defesa”. Para Lucena, é necessário fazer uma “grande política pública” como foi realizada com as drogas na década de 80. “É preciso que haja políticas contra o radicalismo e políticas de violência na vida dos jovens”.
População tem buscado outras formas de segurança
Em decorrência dos recentes acontecimentos, moradores do Chicago têm apostado na segurança privada para se proteger dos crimes violentos. No bairro de Lincoln Park, um grupo de moradores se uniram para contratar empresas especializada no assunto, alegando que a polícia não tem recursos ou pessoal suficiente para proteger a população. “Os políticos continuarão culpando uns aos outros e tudo o mais, incluindo a pandemia”, disse Patricia Horton, de 44 anos, mãe de dois filhos, à agência AFP. “O crime está fora de controle e a polícia está com escassez de pessoal ou simplesmente não está por perto. É realmente triste que isso seja necessário”, prosseguiu. Os custos e serviços variam, mas normalmente solicita-se que os moradores paguem US$ 100 por mês ou US$ 1.200 por ano. No bairro de Wicker Park, os locais desembolsam US$ 175.000 por ano para proteger a região.
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