Poder de compra do brasileiro volta ao nível de 2011

  • Por Estadão Conteúdo
  • 16/10/2016 09h43
Marcelo Camargo/Agência Brasil Supermercados

O orçamento cada vez mais apertado trouxe novos hábitos para a vida da consultora de beleza Karen Lima Piasentim. Com a renda em queda, ela trocou o antigo hobby de comprar sapatos por uma nova mania: colecionar tabloides de liquidação e traçar estratégias para conseguir comprar ao menor preço possível. A ideia é mapear os trabalhos fora de casa e os supermercados que estão na mesma rota. “Assim, consigo comprar o produto mais barato e não gasto combustível”, conta a consumidora, que também virou visitante assídua de sites de desconto.

O malabarismo feito por Karen tem sido rotina para grande parte das famílias que viram os gastos extrapolarem a renda de 2014 pra cá. Em dois anos, o poder de compra da população brasileira – um cálculo que leva em conta a renda do mercado de trabalho, a renda da previdência, o crédito, os juros e a inflação – caiu de R$ 3,49 trilhões para R$ 3,17 trilhões, queda de 9,1% chegando ao menor patamar desde 2011, segundo a Tendências Consultoria Integrada. Na prática, significa dizer que a população está mais pobre, sem condições para aumentar consumo nem fazer poupança.

Neste ano, segundo o economista João Morais, autor do levantamento, o principal limitador do poder de compra das famílias brasileiras foi o mercado de trabalho. Em dois anos, a taxa de desemprego do País saltou de 5% para 11,6%. Junta-se a isso o aumento dos juros e a escalada dos índices de preços ao consumidor, que corroeram a renda do brasileiro (algo em torno de 24% de 2014 pra cá).

No dia a dia, o efeito desse conjunto de taxas e cifras é a sensação de que o mesmo salário não dá conta das mesmas despesas do passado. “Tivemos dois anos de inflação alta e reajustes salariais abaixo dos índices”, lembra Morais.

Para encaixar as despesas ao orçamento, os consumidores cortam quantidades, trocam marcas, eliminam produtos considerados não essenciais e mudam hábitos. Só neste ano, o consumo de combustíveis caiu 4,44%; o de energia elétrica, 1,25%; e a venda de veículos novos recuou 22,8%. “Temos percebido uma mudança no padrão de consumo dos brasileiros, que passaram a racionalizar até na alimentação”, afirma Christine Pereira, diretora comercial da Kantar Worldpanel, que consulta 11,3 mil lares no Brasil inteiro.

Segundo ela, esse movimento se reflete em marcas mais populares e no aumento das idas ao supermercado em busca de promoções. “As famílias estão fazendo malabarismo. Mesmo nas promoções, para comprar algum produto ‘premium’, só com uma marca mais popular”, diz a executiva. Karen confirma a tese de Christine. “Antes tinha preconceito com algumas marcas. Hoje experimento coisas que não conheço.”

Retomada deve ser lenta

A queda no poder aquisitivo fez o brasileiro rever alguns hábitos adquiridos nos tempos de bonança da economia. As idas aos restaurantes escassearam e a frequência nos supermercados subiu – afinal, cozinhar em casa é mais barato. De acordo com o boletim Consumer Thermometer, da Kantar Worldpanel, de agosto, 22,7 milhões de lares aumentaram a frequência em supermercados em busca de liquidações.

“Percebemos que as famílias estão comprando ingredientes para fazer a comida em casa, como leite condensado, creme de leite, linguiça e hambúrguer”, diz a diretora comercial da Kantar, Christine Pereira. Segundo ela, desde o início da crise, os produtos que mais crescem na lista de compras são linguiça, açúcar e café torrado. E essa mudança de hábito deve demorar a ser revertida. Segundo João Morais, economista da Tendências Consultoria Integrada, o poder de compra dos brasileiros deve começar a se recuperar a partir de agora, mas lentamente. Em seus cálculos, no ano que vem, o poder de compra deve crescer algo em torno de R$ 50 bilhões, de R$ 3,17 para R$ 3,22 trilhões – muito pouco diante das perdas acumuladas. No cenário de Morais, essa pequena retomada será impulsionada pelo crédito e redução dos juros.

Enquanto o cenário de crise não é revertido, a regra é se adaptar. A representante comercial Tatiana Arjona parou de comer fora, trocou o Nespresso, em cápsulas, pelo café Pilão, em pó, e deixou de ir ao salão de beleza para fazer unha em casa. “Está tudo muito caro. Parece que o dinheiro não vale mais nada”, diz. Ela fechou uma empresa por causa da crise e passou a ser representante comercial ao lado do marido, Ivan. Nesse processo, a renda do casal caiu 40%.

Até mesmo durante a semana, em que precisa comer fora, ela tem racionalizado. “Costumávamos almoçar num restaurante específico e trocamos por um mais barato para se encaixar no novo orçamento”, conta.

Como ela, outros milhares de brasileiros têm seguido o mesmo caminho. O tíquete médio nos restaurantes por quilo – que mostra quanto cada pessoa paga por refeição – caiu 13% no último semestre e o do prato feito, 3%. Por outro lado, houve aumento de 15% na frequência em que o consumidor optou pelo sanduíche na hora do almoço, segundo a Kantar.

Na casa da consultora de beleza Karen Piasentim, até a tradicional pizza entrou na dança. Pesquisadora voraz de promoções e liquidações, ela encontrou um local no bairro onde a pizza custa metade do preço. “Pagava R$ 40 e agora compro por R$ 24. E é gostosa.” Outra estratégia adotada por ela é usar o tíquete alimentação do noivo para fazer as compras do mês. “Eu cozinho e ele leva marmita. Fica muito mais barato.”

Serviços

“Sem dúvida, a maior redução ocorreu no setor de serviços, seja de alimentação ou de beleza”, diz o diretor executivo da consultoria Plano CDE, Maurício de Almeida Prado. Segundo ele, a diminuição de saídas para comer fora não só impulsionou idas ao supermercado como também elevou a demanda por alguns serviços. Estudo feito pela consultoria detectou que houve aumento na busca por pacotes de internet, além da estabilidade nas assinaturas de TV.

A explicação é que a classe C usou esse mix de internet e TV a cabo para preencher o vácuo deixado pela redução dos programas de lazer. Na opinião de Prado, outra característica desse momento é a mudança para marcas mais populares. “É quase uma volta atrás no consumo. Hoje, os brasileiros priorizam e valorizam mais o custo dos produtos.”

A psicóloga Michelle Dehn não só troca as marcas como também os produtos de acordo com o preço. Se uma determinada mercadoria está cara, ela compra um similar ou simplesmente corta da cesta do mês. Ao perder o emprego em um hospital, o orçamento familiar ficou bastante reduzido, conta ela. Hoje, seu rendimento vem do consultório, onde a renda também foi reduzida. “Não perdi paciente, mas tive de renegociar preço.”

Na luta para se adaptar à nova realidade, Michelle colocou a filha para estudar apenas meio período. Na escola do outro filho, está negociando uma bolsa. Se não conseguir, terá de procurar uma escola mais barata. “Sentimos muita falta dos passeios de fim de semana, das viagens e dos restaurantes. Mas temos tentado compensar com a reunião de amigos em casa.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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