Candidatos negros apontam resistência dentro dos partidos: ‘Condições para brancos ainda são melhores’
Apesar do Estado de São Paulo ter batido recorde de negros concorrendo as eleições municipais de 2020, candidatos afirmam que ‘minorias são usadas como pequenos puxadores de votos’
Assim como no resto do Brasil, o número de candidatos negros na cidade de São Paulo atingiu em 2020 o maior percentual já registrado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que começou a coletar dados de raça em 2014. O pleito deste ano, que escolherá prefeitos, vice-prefeitos e vereadores, tem uma proporção de 29,63% de candidatos negros, contra 69,24% brancos. Em 2016, nas últimas eleições municipais, 25,86% dos candidatos eram negros, e 73,64% brancos. Já em 2014 e 2018, quando foram escolhidos o presidente da República, governadores
A representatividade fica prejudicada, no entanto, quando os dados analisados são por cargo disputado — há muito mais candidatos a vereador no país do que candidatos a prefeito e vice-prefeito. Mais de 97% das candidaturas negras no Estado de São Paulo são para vereadores, enquanto para vice-prefeitos são cerca de 3%, e para prefeitos, nem 2%. Entre os partidos com maior número de candidatos — MDB, PSD e PP — os negros são, respectivamente, 26%, 25,7% e 23%. Marco DiPreto, candidato a vice-prefeito pela Rede na cidade de São Paulo, afirma que, apesar do aumento das candidaturas negras em 2020, muitas vezes essa abertura de espaços não visa a inclusão, mas sim a utilização de minorias “como pequenos puxadores de votos para a legenda, para ampliar a base dos majoritários ou até mesmo desviar fundos”. “Basta analisar as condições que são dadas aos candidatos negros, diferente até dos outros candidatos pequenos brancos. Os negros são enganados com o ‘canto da sereia'”, diz.
Para Samuel Emílio, candidato a vereador pelo PSB-SP, as candidaturas negras que tem mais espaço nos partidos são aquelas com baixo potencial de votos, que servem como “cabos eleitorais de outros vereadores que normalmente são eleitos”. “O que gera resistência são as candidaturas como a minha, que são competitivas e que efetivamente podem ocupar uma cadeira na Câmara no lugar das pessoas que lá estão hoje. O que observamos no Brasil inteiro é que os políticos tendem a a privilegiar o status quo, criar mecanismo para que eles continuem no poder, e não a renovação do poder. Essa resistência tem continuado como sempre foi, o movimento do Black Lives Matter teve um impacto zero dentro dos partidos. As condições para os brancos ainda são melhores”, avalia. Nas eleições municipais de 2020, pela primeira vez, candidatos a vereador não poderão concorrer por meio de coligações. Com isso, o candidato a uma cadeira na câmara municipal somente poderá participar do pleito em chapa única dentro do partido ao qual é filiado.
Regra de divisão de recursos não funciona na prática
O aumento das discussões sobre racismo e representatividade em 2020, causadas principalmente pelos protestos contra a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, e do adolescente João Pedro, no Rio de Janeiro, chegaram também ao Judiciário. No último dia 10, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a reserva de recursos para negros nas eleições já deve valer para o pleito municipal de 2020. Em agosto, o TSE aprovou a regra pelo Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), que só seria aplicado para 2022. Pela nova norma, os recursos deverão ser distribuídos de forma proporcional entre os candidatos brancos e negros.
Nesta sexta-feira, 2, o restante dos ministros do STF também votou a favor de antecipar para as eleições deste ano o uso do critério racial na divisão de recursos do Fundo Eleitoral — e do tempo de propaganda no rádio e na televisão de cada partido. “Com essas distribuições proporcionais, teremos uma maior possibilidade de ouvir e ver os candidatos negros e de, assim, fazer com que suas ideias cheguem ao grande público. Enxergo como uma verdadeira revolução na forma como podemos fazer as eleições hoje em dia”, aponta o advogado e consultor jurídico da Educafro, Irapuã Santana. Segundo ele, a mudança nessas leis significa corrigir “algo que estava injusto, para não ficar desproporcional como vinha acontecendo historicamente”.
No entanto, candidatos têm denunciado que concorrentes brancos ainda tem recebido mais dinheiro dos partidos, já que a lei não prevê que todas as candidaturas precisam ser financiadas e nem quais devem ser priorizadas. Dessa forma, a direção pode destinar a maior parte dos seus recursos apenas para alguns desses candidatos. Keit Lima, candidata a vereadora pelo PSOL — partido que acionou o Supremo para que a regra valesse já para essas eleições –, afirma, por exemplo, que vai receber menos de 10% do valor do que homens brancos que já ocupam uma cadeira. “Espero que o partido reveja a sua decisão, porque entrar com uma ação junto com a Educafro, uma das organizações que construo há mais de 10 anos, e mesmo assim me dar 11 vezes menos que homens brancos é uma ofensa as mulheres negras e ao movimento negro que está na base, lutando e brigando pela nossa dignidade”, escreveu nas redes sociais. De acordo com Samuel Emílio, a norma precisará ser fiscalizada. A Educafro está desenvolvendo, por exemplo, um aplicativo onde as fraudes poderão ser denunciadas. A tecnologia também fará um cruzamento de dados para saber a porcentagem de pessoas negras se candidatando em cada município, e se o partido está destinando a porcentagem do fundo eleitoral e partidário para essas pessoas.
Mulheres negras são minoria
Mulheres já são minoria na política e, entre as negras, a falta de representatividade é ainda maior. Em um recorte de gênero, elas são 31% do total de candidaturas negras em São Paulo. “Em um país onde mais da metade da população é preta, e mesmo assim a maioria das pessoas coloca brancos e homens no poder, é falta de politização, de informação. Precisamos mostrar que as pessoas negras também são capacitadas”, afirma a candidata pelo PTB e medalhista Olímpica pela Seleção Brasileira de Basquete, Kelly Muller. Se for eleita, ela será a primeira mulher atleta dentro da Câmara Municipal de São Paulo. Em um País onde 45% dos lares são chefiados por mulheres, segundo o Ipea, e onde mulheres negras são 60% das vítimas de violência doméstica, de acordo com dados de 2016 do Ligue 180, Kelly aposta no esporte e na educação como formas de desenvolvimento. “Muitas vezes elas não tem onde deixar os filhos quando vão trabalhar. Se tivesse uma atividade, um esporte, para a criança fazer, talvez ela não fosse para a rua e se envolvesse com atividades que não são boas”, diz. Já para o candidato a vereador pelo PDT, Jesus dos Santos, ter negros dentro da Câmara Municipal “significa valer e fazer acontecer a efetiva democracia no Brasil”. “Essas são as candidaturas que estão identificadas com os povos marginalizados. Se as demandas desses povos fossem formuladas e executadas por essas pessoas haveria, no mínimo, uma discussão em torno desses temas”, aponta. Segundo ele, o orçamento público precisa chegar às periferias, que “vem sendo degradadas pela inexistência de políticas públicas”. “Vamos propor uma reforma administrativa, revisão nas políticas fiscais e tributárias da cidade”, diz o candidato, que é cabeça de chapa da candidatura coletiva “Periferia É o Centro”.
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