Casamento só dura pela falta de tentação, e quem é bonito e rico sempre terá outras possibilidades de paixão e sexo

Monogamia nasce da escassez de recursos; uma pessoa não muito poderosa, não muito bela, como a maioria de nós, tende a se encostar por falta de oportunidade de pecar

  • Por Adrilles Jorge
  • 20/11/2021 10h00 - Atualizado em 20/11/2021 15h22
wirestock - br.freepik.com Close nas mãos de dois noivos entrelaçadas, ambos com aliança Querer amar alguém pela eternidade é o nobre princípio do casamento, mas a tentativa de amor desesperada pode se converter em ressentimento

Até que a morte os separe, diz o padre. Mas relacionamentos, amores, desejos, afetos e admirações morrem o tempo todo. Tentar a ressurreição permanente num casamento é nobre. Querer amar alguém pela eternidade é o nobre princípio do casamento. Querer amar alguém, tentar construir uma relação plena, com base em amizade, filhos, parceria, comunhão de almas, é belo. Mas quando o amor, a comunhão, a comunicação vão embora, querer amar alguém na marra se transforma em ódio contra o próprio desejo. E a tentativa de amor desesperada pode se converter em ressentimento que prejudica ainda mais a outra pessoa e a própria relação. Casamento é angu de caroço. É, sim, a melhor e mais perfeita parte da tessitura de organização social. A criação de filhos em um ambiente familiar, em que laços sanguíneos se tornam afetivos, é a melhor estrutura de construção de uma sociedade harmônica. Mas a natureza — tanto humana como animal — não é tão harmônica assim. Nossos desejos mudam. Não necessariamente nos reconhecemos no adolescente que se encantou por aquela pessoa que está conosco há anos.

A grande base sólida do casamento é a falta de tentação. Uma pessoa não muito poderosa, não endinheirada, não muito bonita, como a maioria de nós, tende a se encostar no casamento por falta de oportunidade de pecar. Alguém muito bonito e rico (ou famoso e poderoso) tende a ter inúmeras ofertas de amor e sexo com pessoas deslumbrantes, atraentes, encantadoras. Não é por acaso que famosos, ricos e poderosos tendem a se casar várias vezes, namorar inúmeras pessoas. Uma pessoa muito bonita tem oportunidades mil de portas abertas. Uma pessoa muito bonita, por exemplo, tende a se desenvolver menos do ponto de vista intelectual, e até moral, porque a introspecção é pouco estimulada em sua vida. Festas, convites, baladas e oportunidades aparecem o tempo todo ao seu redor, como um demoniozinho a chamando para sair de casa.

Já o feio, vesgo, espinhento, cabeçudo, desde jovem (eu, por acaso) tende a perceber na própria carne a injustiça da anatomia como destino. As paixões, os olhares se desviando, as paixões rejeitadas, os medíocres belos ganhando as menininhas. Daí o sujeito vai se entupir de poesia, literatura e filosofia para tentar encontrar uma razão para a vida, que, claro, é a razão da injustiça da vida para consigo, que não é culpa de ninguém, mas do destino. Este vai, eventualmente, se der sorte, achar uma alma profunda como a sua, se casar para sempre e torcer para que nunca acabe — até porque sabe que a oferta é escassa, sobretudo no sentido de não haver pessoa muito profundas, mesmo as feias ressentidas. E as pessoas feias ressentidas se acomodam com outras feias ressentidas e tendem a ser fiéis por medo de solidão, criação de filhos, afinidades socioculturais etc. Daí vivem felizes até quase todo o sempre, sobretudo por falta de tentação. Há muito santo por aí que vira santo por falta de oportunidade de pecar.

Ah, claro que beleza é relativa. Mas a feiura, sobretudo para o feio, é absoluta. Não caiam em papo de blogueirinha autoestima. Padrões clássicos de beleza existem e são vinculados à anatomia reprodutiva. Há gente feia e gente bonita que podem alterar seus aspectos pela personalidade, mas isso ocorre em 1% dos casos. Tem também os poderes do dinheiro, o poder do intelecto, poderes simbólicos, outros alternativos e subjetivos de atração que atravessam a mera anatomia, claro. Mas estes poderes alternativos seduzem alternativamente. Alguém até pode se sentir seduzida pelo dinheiro ou pelo intelecto, mas são curvas turvas de sedução, por traços e esboços de personalidade que não necessariamente representam a pessoa inteira a ser amada. E tem também as pessoas que com mau gosto, assim chamado de ”pulsão de morte” por Freud. Pessoas de dedo torto, que nunca se casam ou se casam com gente que torna suas vidas uma miséria total.

Mas o maior entrave ao casamento é o da perda de desejo e encanto. Não há tarado que tenha desejo pela mesma pessoa por mais de dez anos, mesmo que nutra encanto e admiração profunda pela pessoa. Daí o entrave moral: por que ser fiel a quem você não mais adora e deseja? Por que não torná-lo um amigo, e não um cônjuge eterno? Por que ser eternamente obrigado a jamais desejar outro alguém para além da promessa de fidelidade eterna? Por que não ser fiel a seu próprio desejo? Qual o crime em se desejar e querer outra pessoa e deixar de querer uma? Sim, há a responsabilidade com os filhos, a responsabilidade mesma em não magoar quem se ama. Mas os filhos você pode continuar a cuidar e amar, sem necessariamente estar com seu cônjuge, desde que não seja muito pobre. E há outra coisa que mantém o casamento sólido: a pobreza. A maioria das pessoa não é rica. E é difícil manter várias pessoas, filhos ou mesmo ex-cônjuges com pouca grana.

Notem bem, não me interpretem mal; acho belíssima a promessa de amor eterno, em querer amar, em cultivar uma relação, em estabelecer uma comunhão milagrosa da carne de duas pessoas que se amam e decidem continuar se amando. Mas os olhos humanos se espalham em 8 bilhões de oportunidades para estas conjunções sócio carnais e espirituais. Por que o primeiro milagre da primeira paixão deverá anular outras possibilidades de encantamento passional no futuro? O casamento eterno e monogâmico então deve se escorar num acaso de duas pessoas que se encontram num determinado momento jovem da vida, depois nunca mais se poderá conhecer e se apaixonar por outra? A castração e a cegueira voluntária para a vida futura, para seu desejo futuro, é a base do casamento? Questiúnculas.

O casamento é a base da manutenção de uma sociedade sadia. Mas não é a base da natureza humana. E a natureza humana se deslimita, se desnatura, claro. Se desnatura para mais ou para menos. Para mais quando se tem muito dinheiro, poder e beleza, quando o mar de tentações se oferece em corpos e pessoas interessantíssimas. Sim, você pode ser uma fortaleza de resistência, mesmo sendo rico, famoso e poderoso, e resistir a outras pessoas. Mas qual o fundamento moral desta resistência a outras pessoas que te amam? A monogamia e o casamento são abstrações criadas que nada têm a ver com a natureza humana, que, por sua vez, nada tem de sólida. A natureza humana se desnatura para menos. A falta de grana, poder ou beleza também convidam a um casamento mais tranquilo, em que a fidelidade se dá por limitação de oportunidades. Esta segunda hipótese — a limitação das oportunidades humanas — é a causa principal do sucesso até hoje do casamento em todas as épocas e sociedades. É esta falta de oportunidade que mantém o casamento, nos possibilita aprofundar as relações afetivas a longo e até a eterno prazo. A falta de oportunidades e a tara obsessiva do desejo eterno por uma única pessoa. Você escolhe seu melhor principio de romantismo casadoiro.

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