Quem julga o julgamento de Mariana Ferrer? Juiz que assistiu à humilhação também estuprou o conceito de Justiça

Caso expõe injustiça trágica da Justiça brasileira: o preconceito contra mulheres que se dizem violentadas, que alimentam culpa e vergonha, e que têm medo de se exporem e serem violentadas novamente

  • Por Adrilles Jorge
  • 08/11/2020 10h00 - Atualizado em 08/11/2020 10h47
LUCAS LACAZ RUIZ/ESTADÃO CONTEÚDO manifestação Manifestantes participam de ato pelo fim da cultura do estupro em São José dos Campos (SP), na manhã deste sábado, 7

Quem julga um juiz? Quem julga um advogado que humilha uma mulher que, certa ou errada, se coloca à mercê do escrutínio da Justiça para que esta investigue um possível estupro cometido contra ela? O advogado que lançou acusações vis e brutais sobre a moral e o caráter de Mariana Ferrer, que afirma ter sido estuprada, advoga uma causa de opressão pela intimidação e humilhação covarde. O juiz que assistiu passivamente à humilhação de uma mulher pelo advogado do réu também estuprou – pela omissão – os direitos dela como cidadã. Sim, a omissão é o mais vil dos crimes, porque ele é invisível e não passível de condenação. Ao ver uma mulher sendo estuprada na sua frente, uma pessoa passiva e indiferente não vai presa por sua inação. Ao ver uma mulher humilhada em sua frente, o juiz não será condenado por omissão ou indiferença. Quem julga a covardia omissa de quem vê uma injustiça à sua frente? Quem julga um juiz omisso diante de uma injustiça? Sim, há toda uma dramaturgia, uma encenação para convencimento de um júri em qualquer julgamento. O passado de uma alegada vítima pode ser colocado frente a um júri para que este possa analisar o caráter da pessoa que pode ser uma vítima que clama por justiça ou uma oportunista que lucra com seu vitimismo. A duas hipóteses sempre são possíveis. Mas esta encenação não permite uma opressão explícita. Ou não deveria permitir. A suspeita da intenção de uma suposta vítima não permite, não deveria permitir jamais que a própria Justiça cometesse, através da truculência de um advogado e da omissão de um juiz que a suposta vítima fosse de fato vitimizada pelo próprio Judiciário.

O caso de Mariana Ferrer expõe uma injustiça trágica e cotidiana da própria Justiça brasileira: o preconceito contra mulheres que se dizem violentadas, que alimentam culpa e vergonha pelo próprio abuso que sofrem. E o medo que tem de se exporem e serem violentadas novamente pela sociedade, pelo estado. Pelo machismo deste advogado que humilhou a senhorita Ferrer. Pelo machismo do juiz que omitiu ajuda diante da humilhação da senhorita Ferrer. O dramático é que este machismo é em grande medida alimentado por um feminismo radical que vê todos os homens como potenciais abusadores e todas as mulheres como potenciais vítimas. Por óbvio, há pessoas de caráter turvo em ambos os sexos. Por óbvio, há abusadores e oportunistas de ambos os sexos. A desconfiança e a condenação que o feminismo radical faz de todos os homens faz, por sua vez, com que se desconfie de mulheres que são vítimas reais de abusadores reais.

A humilhação e omissão criminosas a que foi submetida Mariana Ferrer é consequência de uma sociedade polarizada e cega a um princípio de percepção da realidade para além de sectarismos ideológicos e identitários que confinam a visão da realidade mais clara. Mariana Ferrer foi humilhada e vitimizada pela própria Justiça brasileira. Esta é uma realidade clara. Uma realidade clara que talvez seja fruto do casamento perverso entre um machismo opressor com o feminismo radical.

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