Usar um bode expiatório para o que aconteceu com Paulo Gustavo é condená-lo de novo à morte

Humorista pregava o amor em suas obras, diferentemente daqueles que sobem em cadáveres para chamar o presidente de genocida e promover discurso de ódio

  • Por Adrilles Jorge
  • 08/05/2021 10h00
Divulgação/Globo Filmes Cena do filme O ator Paulo Gustavo interpretou a divertida Hermínia na franquia "Minha Mãe é Uma Peça"

A genialidade do comediante Paulo Gustavo era mostrar um humor afetivo e familiar, identificável por todos em seus personagens. Os conflitos familiares eram mostrados como o que eles são: tortuosos, eivados de neuroses, diferenças, preconceitos entre mãe e filhos, irmãos, tios e tias, amigos etc. Suspeitas, raivas, ninharias, ciúmes, invejas, tudo isso superado pela força de um amor que nunca é exatamente puro, mas sempre condimentado por todas essas diferenças. A genialidade de Paulo Gustavo era mostrar que não existe amor utópico e asséptico entre as pessoas. Que o amor é uma conquista diária e cotidiana. O humorista tirava graça de pequenas desgraças cotidianas superadas por uma tentativa permanente de afeto e consideração para além das diferenças. A mãe que supera o preconceito pelo filho gay, a perua preconceituosa que despeja seus ódios como forma de escamotear sua solidão e a ninfomaníaca feia que engana a própria solidão em seu vício em sexo e cegueira de si são exemplos de personagens que lutam (ou cedem) contra preconceitos internos e externos pra fugirem de todo isolamento humano. Exemplos de como a única porta de saída para o confinamento das neuroses, desconfianças, egolatrias é a ponte para o outro.

Sua morte em um momento em que a polarização política transforma humor em militância e discordância em ódio é emblemática. O vírus que o matou, que poderia unir um país, fonte de discórdia entre pessoas que chegam a usar a morte do humorista como palanque para demonizar o seu potencial assassino, no caso o presidente Bolsonaro, responsabilizado por 400 mil mortes pela militância de oportunismo ideológico. O presidente é alvo de um fenômeno de ódio mitológico e oportunismo político. Na mitologia, o bode expiatório é aquele animal sacrificado em nome da salvação de todos. Um inocente que expurga as culpas e pecados de todos. Bolsonaro, com seu discurso em prol de liberdade (ainda que um tanto irresponsável), em um tempo em que todos cultivam o medo como proteção de instinto de rebanho, é o bode. Matar um bode expiatório é a maneira como as pessoas não conseguem lidar com problemas insolúveis — como a morte em si. O presidente, que teve poderes de combater a pandemia cerceados, tem no seu discurso de apologia à liberdade irrestrita uma razão turva para ser o culpado “abstrato” pelas mortes por Covid-19. Somado ao sangue do bode, há os oportunistas que se alimentam das mortes de inocentes para se cacifar como heróis, matando várias vezes o bode e subindo nos cadáveres das vítimas da pandemia para fazer um discurso de ódio em cima do pretenso amor às vítimas.

Aí entra outra vez a figura emblemática de Paulo Gustavo. Sua obra preconizava o amor como superação das diferenças, o amor que se formava a despeito e por causa das diferenças. O amor que era a sublimação das dificuldades e fruto da superação contínua e diária das dificuldades. Quando alguém diz que o ator foi vítima de um presidente “assassino” — e de todos que eventualmente o apoiam ou não creem na figura de um “genocida” —, este alguém está negando a obra amorosa do humorista. Está apostando no ódio como forma de revolta contra o que não foi obra de ninguém. A morte por um vírus é a morte pelo acaso de uma forma de vida que se alimenta de morte. Uma força da natureza sem ética, sem moral. As discussões sobre responsabilidade por mortes vão até onde se possa responsabilizar a tentativa bem sucedida ou fracassada (ou falta de tentativa) de salvar alguém. Criminalizar um potencial desacerto na salvação de uma pessoa é matar a humanidade dentro de si. Criar um bode expiatório, condenar o bode, matá-lo para ficar em paz com um problema sem solução, para ficar em paz com um vírus que mata sem moral, é matar a humanidade dentro de si. Mais: usar de pretenso amor a uma vítima que pregava um amor verdadeiro, como Paulo Gustavo, para culpar um bode expiatório por sua morte — e depois tirar proveitos políticos e egoicos para sua vaidade — é matar a própria humanidade e ressuscitar uma morte permanente dentro da alma.

Quando uma pessoa se utiliza da morte de Paulo Gustavo — um homem que pregou um amor como cura para as mazelas humanas — para condenar, massacrar e humilhar pessoas sem culpa e ainda tirar proveito pessoal deste ódio, esta pessoa está matando mais uma vez Paulo, pelo assassinato do amor que o humorista pregou. Ódio falsamente amoroso, falsamente indignado, verdadeiramente oportunista, este que é a antítese da obra do comediante, um homem que pregou o amor e que morreu em tempos de ódio e falso amor. Oxála o amor vença, como sempre vencia nas ficções de Paulo Gustavo. Oxalá a realidade copie a ficção. E que possamos um dia rir de nossa desgraça. Afinal, este é o conceito do humor: rir da tragédia humana, saber rir, em comunhão, de nossos erros e tentar acertar juntos, apesar e por causa de nossas diferenças. Como pregou Paulo.

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