Profissionais da saúde são heróis invisíveis na guerra contra o inimigo invisível

Pouco se fala dos 990 médicos, enfermeiros e técnicos que morreram por Covid-19 depois de figurar na linha de frente do combate ao coronavírus

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 28/01/2021 13h12 - Atualizado em 28/01/2021 13h19
Adekele Anthony Fote/Estadão Conteúdo - 22/12/2020 Manifestação de profissionais da saúde em São Paulo alertou para a necessidade do uso de máscaras e álcool em gel

Este é um assunto pouco explorado pela imprensa, pelo menos até agora: a morte de profissionais da saúde que estão na linha de frente do combate à Covid-19. Estão expostos todos os dias à doença, tentando salvar vidas, e muitas vezes acabam por perder uma batalha desigual na luta contra esse inimigo invisível. Como numa guerra. Muitos dos que estão na linha de frente morrem vítimas do mal que estão combatendo. Muitos estão expostos inteiramente, já que, em diversas regiões país, eles dispõem de uma defesa razoável. A pandemia no Brasil já matou quase mil desses heróis que se dedicam a salvar a vida dos doentes. De acordo com dados oficiais, 990 médicos, enfermeiros e técnicos morreram nos últimos dez meses. Desde o primeiro registro de óbito, em 27 de março de 2020, morrem, em média, três profissionais da saúde por dia. Esses números foram informados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), baseados em dados das secretarias estaduais e municipais de Saúde.

Nesse período de dez meses, morreram 67 profissionais no Rio de Janeiro, 63 em São Paulo e 54 no Pará. O professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, diz que a morte deles ocorre de forma contínua em toda a pandemia, já que o fluxo de atendimento é permanente e a linha de frente nunca é desativada. Mesmo no período de alguma estabilidade, os patamares são elevados. Não há escapatória nem descanso. A luta é ininterrupta. Sempre há alta ocupação de doentes nas enfermarias, nos leitos de UTI e na triagem. O movimento não para. Em momento algum esses profissionais deixam de estar expostos ao vírus. Com esse número de mortes, o Brasil se iguala a outros países que foram atingidos pela doença de maneira mais dura. A CFM observa que o óbito de quem trabalha diretamente no combate ao coronavírus deve levar em conta os contextos regionais brasileiros. Nisso, por exemplo, se inclui especialmente o Pará, estado com pouca população, mas onde as mortes se igualam às de São Paulo e Rio de Janeiro.

Países como o Brasil e os Estados Unidos tiveram a população mais atingida pela Covid, e os médicos fazem parte desse cenário. Sempre convém lembrar que, nesse assunto, o Brasil é o primeiro no ranking, no que diz respeito às desigualdades, o que torna tudo mais difícil. Motivo: faltam equipamentos adequados de proteção individual e há sobrecarga no trabalho. Em São Paulo, especialmente, os médicos têm questionado o critério de imunização do governo do estado, reclamando da vacina para os profissionais que estão mais expostos à doença. As queixas são feitas pelo presidente da Associação de Médicos do Instituto de Infectologia do Hospital Emílio Ribas, Eder Gatti, que tem cobrado providências. Mas Gatti estende suas críticas ao dizer que quando o presidente Bolsonaro promove as aglomerações costumeiras, sem uso de máscara, isso tem um efeito de grande impacto na questão, porque aumenta o número de infectados e, consequentemente, atinge também os profissionais da saúde.

Pior de tudo é que, neste momento, não há vacinas suficientes para atendê-los. Os especialistas estimam ser necessárias pelo menos 10 milhões de doses. Como especialista em medicina preventiva, o professor da USP Mário Scheffer adianta que o Brasil vive num cenário de improvisações e muita precariedade, como está se vendo na vacinação. Diz que esse planejamento deveria ter sido feito há muitos meses, não agora, na correria. E, se existe correria, é porque o Ministério da Saúde não fez o trabalho como deveria. Scheffer inclui nisso a contenda entre o presidente Bolsonaro e o governador João Dória. Trata-se de um quadro cada vez mais deprimente. As entidades de médicos dizem que perderam a esperança de qualquer diálogo com o Planalto. Em carta publicada recentemente na revista médica “The Lancet”, o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, que coordena a pesquisa nacional sobre a Covid-19, diz que se o Brasil tivesse tido um desempenho apenas “mediano” no combate ao vírus, teria salvado mais de 150 mil pessoas. Ele afirma que o governo federal tem o peso maior em tudo o que aconteceu e tem acontecido. A verdade é que o governo brasileiro nunca levou o vírus a sério. Pelo contrário. O país zombou de uma doença que já matou quase 220 mil de seus filhos. Zombou e continua zombando, como se nada estivesse acontecendo. Uma insensibilidade espantosa para um problema cada vez mais grave, que mata cada vez mais. Muitos hospitais brasileiros vivem o colapso total. O Brasil também.

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