Como cheguei aos 100 kg e voltei para contar
Tem gente que é saudável e se sente bem com o peso maior; infelizmente, não era o meu caso
Vulnerabilidade, aqui vamos nós. Pouca gente me viu obesa. Quase que nem eu mesma, já que eu fugia de reflexos em geral. E se hoje eu boto essa história na rua é para, quem sabe, ajudar quem se identifique com ela. Eu nunca havia me preocupado com meu peso, era simplesmente magra, de uma família de magros. Eu já passava dos 25 anos quando comecei a tomar remédios para depressão. Fui sentindo mais fome, então fui ler os efeitos colaterais. Por que nunca são “alisa o cabelo, seca a barriga e dá tesão”? Em vez disso, estava lá: “queda de cabelo, aumento do apetite e diminuição da libido”. Mas não tinha jeito. Eu precisava deles naquele momento. Com o tempo, meu apetite começou a aumentar e fui perdendo totalmente o controle. Fiquei anos sem ter a menor ideia de como escapar dessa.
Vamos alinhar uma coisa. Tem gente que é saudável, se sente bem, e fica mesmo bem, com o peso maior. Infelizmente, não era o meu caso. Eu, particularmente, não gostava de estar gorda. Dormia mal, quando meu filho derrubava uma uva no chão eu preferia morrer a ter que pegar, parecia sempre que eu estava subindo as escadarias de Machu Picchu (ofegante e prestes a enfartar) e minha fruta preferida era sorvete de morango. A hora de me vestir era trágica. O guarda roupa foi ficando todo preto e largo, porque eu vivia escondendo partes do corpo que foram ficando esquisitas. Eu nunca sabia se naquela semana estaria vestindo 44 ou 48. Não usava tomara que caia, usava tomara que caiba. Passava a evitar ao máximo sair em fotos, me escondendo atrás de crianças indefesas e cachorrinhos fofinhos. Subia na balança de costas para o médico anotar o peso. “E não ouse me contar que vai estragar minha semana”. O Instagram passou a só ter fotos do meu filho ou de paisagens lindas, para não acharem que eu estava tão miserável quanto de fato eu estava.
Concordo que existem várias coisas que podem colaborar para engordarmos. Problema na tireoide, ansiedade, gravidez, vida corrida, não saber cozinhar e os tais remédios. Mas a real é que, em última instância, eu comia mais do que eu precisava. Beeeem mais do que eu precisava. E se eu não conseguia comer só o que precisava, então eu não tinha o controle sobre o que comia, certo? Nesse caso, lamentei me informar, eu era compulsiva alimentar. É muito difícil admitir que temos esse problema. Mas só a partir desse reconhecimento consegui lutar contra ele. Quantas vezes me enganei jurando que comia pouquíssimo, não ligava para doce e me sentia injustiçada pelo mundo por estar engordando? Quantas vezes, com esses argumentos, posterguei e agravei o problema? Eu até comia salada e grelhado, mas estava mais para um pé de alface com um litro de azeite. O verdadeiro “olho gordo”.
Eu tinha a nítida sensação de que quando todos dormissem, meu marido fosse para o trabalho e meu filho para a escola, eu poderia comer o que quisesse que seria como se não estivesse acontecido. Vamos combinar que é difícil a gente ter compulsão alimentar por repolho. A gente tem compulsão por todos os tipos de farinhas (menos a de linhaça), leites gordos e condensados com chocolate em pó. Pizzas inteiras, pastéis e muitos sanduíches com maionese verde. Eu não repetia. Tripetia. Tive a fase convicta: “Eu estou bem, faço esporte, é uma questão de padrão de beleza”. Concordo que o padrão de beleza de hoje em dia é exageradamente magro. Mas não tinha a ver com isso, infelizmente. Tinha a ver com ter autonomia e controle da mente, que controla a boca, o corpo e a autoestima.
Foi muito tempo de sofrimento, de abuso de pessoas que achavam que me criticando, humilhando e apelidando iam conseguir me fazer emagrecer (ei, você acha que com esse tamanho todo eu ainda não percebi que estou fora do peso?). Muito tempo de legging e camisão, de dietas com chia e água com limão para azedar o começo do dia e de muitos sapatos sem cadarço para não ter que abaixar. Tem muita gente que faz piada de gordo, que desmoraliza, que incomoda. Isso se chama gordofobia, que é preconceito e intolerância com pessoas com sobrepeso. Não é nada legal. Por mais que eu não me sentisse bem acima do peso, sempre tive respeito pelo meu corpo e o das outras pessoas, independente das suas características.
Felizmente, há cerca de um ano e meio, me indicaram uma clínica realmente séria, cuja proposta é tratar a cabeça com terapia em grupo, aliada a uma dieta simples, mas controlada nas gramas. Eles me acolheram, mas acolher não quer dizer passar a mão na cabeça. Muito pelo contrário. É impor limites claros para quem deixou de conseguir estabelecê-los há muito tempo. Todas as desculpas são dadas para justificar comer: “Eu adoro isso”, “Hoje eu mereço”, “É dia de comemorar”. Sem contar quando comemos as dores e as frustrações. E dá medo. Medão. Eu já indiquei a clínica para um monte de gente. Algumas foram, nem todas persistiram. A compulsão é um impulso das entranhas do ser humano. Não do estômago. Do cérebro. E se privar dela é como ter a chupeta arrancada. A naninha doada para o irmão mais novo. Dói. Mas depois é imensamente libertador e o resultado não tem preço.
Hoje estou m-a-g-r-a. Peso algumas dezenas a menos do que quando comecei a dieta. Foram cerca de 10 anos entre começar a engordar, ficar realmente obesa e hoje. Sinto que voltei a viver, que resolvi um problema que tinha tomado minha vida de mim. Muita coisa melhorou. Reaprendi a andar de bicicleta, minha saúde ficou zero bala, minha autoestima está insuportável. Pulo na frente da foto e em seguida posto no Instagram. Fui do tamanho 48 para o 38. Tive que refazer meu guarda-roupa inteirinho, só sobraram os lenços. Conheci a inveja alheia. Lembrei que eu também sentia inveja de quem emagrecia. Fiz uma mala com as roupas grandes. Dizem que eu deveria jogar fora, mas ainda não quis. Se um dia engordo, ter que comprar tudo de novo seria terrível. Mas não vou engordar se mantiver o tratamento para sempre. Sim, para sempre é assustador, mas é uma doença como hipertensão. Tomo os mesmos remédios engordativos que antes. A fome, a compulsão, segue igual ao dia um da dieta. Só porque eu sou magra e como quinoa em todas as refeições, não quer dizer que não penso em cobri-la com Nutella. O que mudou foi minha cabeça. Minha vida toda teve que ser revista. Meu relacionamento, minha vida profissional, a maternidade. Tudo estava distanciado de mim por um palmo de gordura. Por um véu de vitimização. No entanto, sei que o desafio maior vem agora, depois de ter perdido peso. Não esmorecer, seguir lutando, todos os dias. Porque a melhor coisa do mundo é estar no controle. E vestir M na Zara também não faz mal a ninguém.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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