Os desafios de reformar a casa fora e dentro de nós

Eu vivia equilibrando o Macbook, me alojando no espaço mais tranquilo do imóvel, que muitas vezes era entre a máquina de lavar e a tábua de passar; foi, então, que tomamos a dura e custosa decisão

  • Por Bia Garbato
  • 09/11/2022 09h00
master1305/Freepik Jovem casal, família fazendo conserto de apartamento juntos. mãe, pai e filho fazendo reforma Todo mundo sabe que reforma custa o dobro do orçamento e dura o triplo do tempo previsto

Modéstia à parte, eu gosto muito da minha casa. Ela não é grande, mas é ampla, um dos mistérios da vida. É térrea e a maioria dos ambientes está no mesmo espaço. Alcanço quase todos os lugares com dez passinhos (chutei, mas não são muitos). Quando estou com sede à noite, isso é ouro. Na pandemia, no entanto, minha casa ficou a desejar. Nos pegou de surpresa, já que temos apenas dois ambientes fechados: o meu quarto e o quarto do meu filho. Meu marido começou a trabalhar na sala, ou seja, suas videochamadas passaram a ter vista para o freezer. Eu arrumei um cantinho no meu quarto, ou seja, os participantes dos meus calls passaram a mirar meu travesseiro (da Nasa, diga-se de passagem). Resumindo, muito blur no lance. Mas teve um problema mais difícil de resolver. O som. Por exemplo, o barulho do aspirador, enquanto eu escrevia um texto, ou o apito enlouquecedor da panela de pressão. Cachorro, criança, vizinho. Ou ainda, a fala entusiasmada do meu marido em algumas de suas reuniões online. De repente, eu estava dando a minha opinião, a plenos pulmões, sobre o projeto que ele discutia com o cliente.

Eu vivia equilibrando o Macbook pela casa, me alojando no espaço mais tranquilo, que muitas vezes era entre a máquina de lavar e a tábua de passar. Foi, então, que tomamos a dura e custosa decisão de reformar a casa. Todo mundo sabe que reforma custa o dobro do orçamento e dura o triplo do tempo previsto. Mas, com o coração cheio de esperança de trancar meu marido em um escritório e só abrir para ir ao banheiro e almoçar, encaramos essa. Além da questão “onde alojar os móveis?”, veio outra ainda mais complicada: “Onde nos alojar?”. Por conta do pouco tempo, procuramos um flat. Descobrimos que eles têm o metro quadrado mais caro do que o da 5ª avenida em Nova York. Além disso, teríamos que incluir no preço os custos do divórcio. Em relação aos móveis, optamos pela má ideia de juntá-los no meio da casa e jogar uma lona. Isso nunca deu certo na história da humanidade. Já adianto que, na volta, encontramos a TV inteiramente coberta com pó branco e eu tive que limpar os brinquedos do meu filho com cotonete. Mas era o guarda móveis ou a marcenaria, então encaramos.

Dentro deste cenário, decidimos aceitar a oferta, não muito insistente, da minha mãe e do meu padrasto, de nos hospedarmos em sua casa. O resultado? Duas alegrias: quando chegamos (não preciso ver o almoço!) e quando vazamos (quero almoçar o que eu quiser!). Meu padrasto é divertido, generoso e gente boa. No entanto, ele é um pouco metódico, o que deixou a experiência um pouco mais desafiadora. Um desses desafios (parece bobo, mas te juro que não) é resistir firmemente ao sorvete “Baccio de Latte” do anfitrião. Após o jantar, é de lei: ele come exatamente 1/3 do potinho por dia.

Agora, visualiza essa cena: em cima da mesa da copa tem um bolinho de chocolate, nem tão recente, mas que seria salvo magistralmente por aquele sorvete de leite. Conhecemos o geladinho bem, porque ele é servido aos domingos, único dia que a iguaria é compartilhada com a família. Abrimos o freezer. Estão lá, três potes brancos com o escrito: “Baccio de Latte”. Paramos e pensamos estrategicamente sobre qual pote pegar. Afinal, não queremos deixar rastros. As possibilidades são: 1) pegar um pote com o sorvete pela metade. Quem é de casa sabe: meu padrasto o degusta com colheradas direto no pote. Ou seja, podemos até comer um pouco e passarmos desapercebidos, mas vamos ter que compartilhar a baba; 2) pegar um pote inteiro fechado do sorvete. Nem se anime. Qualquer lasquinha será notada; 3) abrir o terceiro pote e… surpresa! Metade maracujá e metade chocolate sem leite (para a minha irmã vegana), disfarçados naquele pote branquinho escrito inocentemente “Baccio de Latte”. Ou seja, melhor se contentar em mastigar aquele bolinho seco puro mesmo.

Outro ponto nevrálgico, veja você, está relacionado à água, tão essencial para vivermos. Pois bem, para sobrevivermos naquela casa é importante aprender a lidar com o filtro e seus humores. Existe uma linha tênue entre rodar o botão o suficiente para ele parar ou para ele te ferrar (leia-se pingar calmamente até alagar o chão). Eles moram em um sobrado. Como não chegam até a cozinha com dez pulinhos, como eu, colocaram um filtro no andar de cima, na sala de TV. Certa vez, algum desafortunado, que nunca foi identificado, pegou sua aguinha e deixou uma suave goteira. Pois bem, encharcou o tapete e manchou o assoalho de madeira. Vou deixar a imaginação de vocês visualizar a reação do meu padrasto quando ele viu a cena. Como se não bastasse, a água vazou para o andar de baixo e começou a pingar lentamente na sala de estar. Não fui eu, mas como não havia provas, me tranquei no quarto simulando uma enxaqueca e só saí no outro dia.

Foi um período diferente: às vezes desconfortável, às vezes divertido. Algumas vezes tive saudades de casa, outras aproveitei o colo da minha mãe e o carinho do meu padrasto. Mas a lição que aprendi é que, independentemente de morar na nossa casa, o importante mesmo é morar no nosso corpo, na nossa alma e na nossa vida. Mesmo que às vezes tenhamos que reformar um cômodo ou outro aqui dentro.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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