Fernanda Calandrino conta como superou câncer e alcançou o sucesso em um universo masculino

Há quase duas décadas na Huawei, diretora de contratos já teve medo da morte e do impacto da doença em sua carreira, mas hoje olha para trás com orgulho: ‘Aprendi a dar valor às pequenas coisas’

  • Por Fabi Saad
  • 24/11/2021 10h00
Divulgação Mulher branca na faixa dos 40 anos de roupa executiva preta e braços cruzados em frente a uma parede de vidro com o símbolo da Huawei Fernanda Calandrino está na empresa chinesa Huawei desde 2004

Nossa Mulher Positiva de hoje é a engenheira Fernanda Calandrino, executiva responsável pelos contratos da Huawei, empresa global líder de infraestrutura de TIC (tecnologia da informação e comunicação) e dispositivos inteligentes. Fernanda é uma das diretoras do Comitê de Líderes Locais da empresa. Exercendo uma função de confiança numa multinacional de tecnologia, área majoritariamente masculina — com o agravante de lidar com uma cultural oriental distante da brasileira —, ela conta como começou sua carreira, a forma como superou um câncer e de qual o segredo para equilibrar a vida profissional com a pessoal. “Depois do meu câncer, eu comecei a enxergar melhor essa relação de equilíbrio e encontrei um meio termo sem sentir tanta culpa. A chave é você saber priorizar na forma adequada em cada momento.”

1. Como começou a sua carreira? Eu tinha o sonho de estudar engenharia, inspirada na carreira do meu pai, que foi engenheiro eletrônico e trabalhou em uma empresa do setor por 35 anos. O meu pai trabalhava duro e com poucos recursos, pagava escola particular para mim e os meus dois irmãos. Minha mãe parou de trabalhar quando eu nasci, para cuidar dos filhos. Ela era professora. Essa situação era muito comum na época em que eu nasci: as mulheres paravam de trabalhar para cuidar da família. Eu era muito estudiosa no ensino fundamental e médio, ganhei bolsa de estudos, e entrei na faculdade com 15 anos. Estudei na FEI (Faculdade de Engenharia Industrial), em São Bernardo do Campo. Sempre me dediquei muito aos estudos, conclui a faculdade com 21 anos, sendo a primeira aluna da turma. Uma turma de 200 formandos, com muito poucas mulheres.

Eu iniciei o meu estágio em 1997, no terceiro ano da faculdade, na mesma empresa em que meu pai trabalhava. Sem dúvidas, o fato dele ter uma carreira sólida me ajudou muito neste início, mas eu tive que provar que, além de filha do Calandrino, sou uma profissional competente. Fiquei oito anos nesta empresa, fui efetivada após a formatura na faculdade, passei por vários departamentos e pude me desenvolver muito como profissional, sempre com dedicação e muita vontade de aprender. Em 2004, recebi o convite para trabalhar na Huawei, onde estou até hoje. Já se passaram 17 anos. Comecei como analista de bidding (área de propostas comerciais), fui crescendo junto com a empresa no Brasil e hoje sou diretora da área de contratos. Tenho uma equipe formada majoritariamente por mulheres supercompetentes e bem-sucedidas profissional e pessoalmente, o que me deixa muito orgulhosa.

2. Como é formatado o modelo de negócios na Huawei? A empresa está no Brasil há 23 anos, oferecendo redes 3G, 4G e 4.5G e, em um futuro bem próximo, 5G. A Huawei está no Brasil para o Brasil. Nestas décadas de parceria, temos trabalhado pela transformação digital brasileira junto com nossos parceiros, sempre respeitando e seguindo as leis locais para entregar a melhor tecnologia e solução. Desses 23 anos, eu já trabalho há 17 nesta empresa, cresci junto com ela, participei de praticamente todos os projetos chaves para o seu crescimento no Brasil. A Huawei fornece equipamentos e soluções de TIC (tecnologia de informação e comunicação) para as operadoras de telefonia, mercado de enterprise (pequenas, médias e grandes empresas em diversas áreas, tais como setor financeiro, energia, governo etc.), soluções de cloud (nuvem), werables (como smartwatches). Mais recentemente, a empresa deu início ao business de energia digital (solar).

Atualmente, eu sou responsável por todos os contratos assinados na empresa, em todas as verticais mencionadas, desde o processo de negociação, tomada de decisão se a empresa irá ou não investir no projeto, gerenciamento financeiro do contrato e recebimento do pagamento. Controlamos o negócio desde o seu início, com suporte muito próximo à área de vendas até a conclusão do mesmo, com o recebimento do pagamento por parte dos clientes, o que chamamos de “end to end”. Tambem faço parte do Comitê de Líderes Locais da Huawei, exercendo a interface entre os colaboradores locais e o board chinês da empresa. Sou a única gestora feminina que participa deste comitê. Informalmente, faço o meio de campo entre os chineses e os brasileiros quando há ruídos na comunicação por diferenças culturais, o que é bastante comum.

3. Qual foi o momento mais difícil da sua carreira? Foi em 2014, quando eu fui acometida por um câncer. O impacto de você saber que tem essa doença é muito significativo. Eu tinha as crianças pequenas naquela época, e a possibilidade de você poder morrer é algo muito aterrorizante. Além do impacto na sua vida pessoal, principalmente no lado psicológico (tive que fazer duas cirurgias — a segunda de grande porte — e tratamento de 40 sessões de radioterapia). O impacto na vida profissional foi bastante grande, pois eu tive que me afastar fisicamente da empresa por um tempo considerável, em uma época em que o home-office não era prática de mercado. Eu já tinha um cargo de gestão naquele momento e ficar sem poder participar presencialmente das atividades do dia a dia gerava um desconforto muito grande. Não se tinha ferramentas adequadas para o trabalho remoto como temos hoje. Esta fase da minha vida foi um período de muita turbulência e incertezas, mas, ao mesmo tempo, um período de reconexão com Deus, de aprendizado muito grande. Eu aprendi a dar valor a pequenas coisas, como agradecer no momento em que você acorda pela possibilidade de viver mais um dia, ser mais tolerante… Comemorar as pequenas conquistas.

Eu mantive a rotina de trabalho durante todo o tratamento, mesmo na fase em que fiquei hospitalizada, pois o trabalho me ajudava a distrair o pensamento e focar em algo que não fosse a doença. Mesmo não estando presente fisicamente, eu consegui manter o vínculo e ir me atualizando e ajudando no que era possível. O apoio dos amigos e familiares também foi fundamental na minha recuperação. Com a graça de Deus, muita fé e, logicamente, um excelente suporte médico, eu fiquei curada depois de seis meses. Faço acompanhamento anual, e consegui superar esse momento difícil.

4. Como você consegue equilibrar sua vida pessoal x vida corporativa/empreendedora? Equilibrar a vida profissional e pessoal sempre foi um desafio enorme. Nos momentos em que priorizei o trabalho, me sentia culpada por deixar as crianças sozinhas e não estar presente em todos os momentos. Quando eu priorizava a família, rejeitando um convite de viagem, por exemplo, eu me sentia desconfortável por deixar de cumprir um compromisso profissional. Mas, depois do meu câncer, eu comecei a enxergar melhor essa relação de equilíbrio e encontrei um meio termo sem sentir tanta culpa. Existe um limite, fazer tudo de forma perfeita é impossível. Então, temos que priorizar o que se deve fazer primeiro. O que não dá para ser feito, tudo bem, está tudo certo. A chave é você saber priorizar na forma adequada em cada momento. Claro que as vezes erramos, mas aí temos sempre a chance de começar novamente do jeito que julgamos mais correto.

5. Qual seu maior sonho? Eu gostaria muito de viver em um mundo menos polarizado, com mais oportunidades para todos. Em um lugar onde as pessoas se conectem mais com a essência, tenham compaixão, tolerância e integridade. Queria que os meus filhos pudessem viver em um mundo melhor do que o mundo que temos hoje. Um mundo mais feliz, onde as pessoas sejam mais gratas. Um mundo mais positivo.

6. Qual sua maior conquista? O que eu mais sinto orgulho atualmente é de receber o feedback de amigos, pessoas do trabalho e familiares de que eu sou inspiração para alguns deles. É muito bacana saber que a sua história de vida e seu jeito de encarar os problemas inspiram e motivam outras pessoas a buscarem, de alguma forma, ser melhores do que são, mesmo que no meu microambiente. Acho que o autoconhecimento é a chave para o sucesso. Eu gosto de estudar sobre esse assunto, tenho feito vários cursos online e posso afirmar que hoje essa é uma das melhores estratégias que tenho. Mais do que conquistas financeiras, acho que você saber quem você é, quais são seus objetivos, o que realmente importa na sua vida, praticar o bem, evoluir como ser humano, é o que devemos buscar. As conquistas financeiras são consequência disso. Treinar a nossa cabeça para a positividade focando no que funciona, na solução, no próximo passo. Aprendendo sempre com as coisas ruins que nos acontecem e agradecendo a possibilidade de tirar algo bom delas. Acredito que quem determina a intensidade da interferência externa na nossa vida somos nós mesmos. Entendo que, ao praticar a gratidão e a compaixão, consequentemente encontramos a felicidade. Parece até simples, mas não é…

7. Livro, filme e mulher que admira. Eu confesso que não sou uma boa leitora, infelizmente. Sempre fui mais fã dos números do que dos livros. Filmes? Gosto muito do “Como se Fosse a Primeira Vez”, comédia romântica, mas com uma mensagem bem bacana de todo o dia agirmos como se tivéssemos que conquistar nossos sonhos do zero, não importa se no relacionamento, na família ou no trabalho. Michelle Obama é uma mulher que admiro muito. Acho que ela consegue equilibrar bem a vida pessoal e profissional, sempre com um discurso alinhado, claro e próximo da realidade das pessoas. Uma pessoa de bem.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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