‘Apesar de avanços, ainda vivemos em um sistema patriarcal e machista’, diz Stephanie Degreas
Em entrevista, atriz e roteirista conta sobre a experiência de escrever e interpretar peças online
Stephanie Degreas, atriz, roteirista e professora de roteiro é a Mulher Positiva de hoje. Degreas fala um pouco sobre como adaptou seu trabalho à pandemia, como concilia seus diferentes ofícios no campo das artes, e sobre a importância das muitas heroínas sem capa que cruzaram sua vida. Além disso, a atriz revela que já tentaram fazê-la acreditar que não era possível ter mais de uma função na carreira. “Eu gostaria de não precisar provar isso, e sinto que muitos dos questionamentos em relação ao assunto surgem do fato de eu ser mulher”, afirma. Confira a entrevista completa abaixo.
1. Como começou a sua carreira? Comecei trabalhando como editora, depois de me formar em Audiovisual na ECA-USP e estagiar na TV USP. Um amigo que estudou comigo na faculdade me recomendou para fazer assistência de roteiro em um projeto que tinha tudo a ver comigo, e que estava sendo escrito pelo Braulio Mantovani. A partir desta assistência, comecei a trabalhar como roteirista, fui contratada pela Rede Globo para colaborar em uma série do Braulio e da Carolina Kotscho, chamada “A Teia”. Fiquei na Globo por cinco anos, enquanto fazia um curso profissionalizante de teatro. Logo que me formei, fui selecionada para um mestrado na Royal Academy of Dramatic Art, na Inglaterra. Quando voltei para o Brasil, passei a trabalhar em ambas as áreas, às vezes simultaneamente.
2. Qual foi o momento mais difícil da sua carreira? Embora trabalhe há mais de dez anos como roteirista e já seja atriz há aproximadamente cinco, acho que ainda tenho muitas situações desafiadoras pela frente. O mais complicado das áreas que escolhi é que, nas duas, muitas vezes nos vemos sem projetos remunerados. Podemos produzir conteúdo independente, e este conteúdo independente pode se tornar um produto a ser comercializado, mas até isso acontecer, dependemos de testes ou contratações em projetos de produtoras maiores. Nesse processo de busca, já me foi insinuado que em algum momento eu precisaria escolher entre ser atriz e ser roteirista. E eu cheguei a acreditar nisso, o que gerou em mim uma crise. A despeito dos muitos avanços que vêm sendo feitos neste sentido, ainda vivemos em um sistema patriarcal e machista, em que somos desencorajadas e temos nossa capacidade produtiva questionada a todo momento. Para entender que isso era uma grande bobagem, precisei ver o exemplo de mulheres incríveis como Grace Passô ou Phoebe Waller-Bridge, para citar duas de muitas profissionais que executam ambas as funções (atriz e autora) com maestria. As funções se ajudam. Eu gostaria de não precisar provar isso, e sinto que muitos dos questionamentos em relação ao assunto surgem do fato de eu ser mulher — homens são incentivados a inovar e testar limites a todo momento. Para nós, ao contrário, são apresentados limites que, para eles, o patriarcado vê como estímulos.
3. Como você consegue equilibrar sua vida pessoal x vida corporativa/empreendedora? Na pandemia, isso se tornou um complicador para todas nós que temos o privilégio de poder trabalhar de casa. Como autora, já estava acostumada a fazer uma parte do trabalho em meu escritório, no apartamento onde moro. E aprendi que uma certa compartimentalização da vida é essencial para poder ser produtiva. Neste momento, a maior dificuldade que surge é que há uma diluição do limiar entre vida pessoal e profissional. Trabalhamos com computador, celular, estamos disponíveis a todo momento, e no mundo digital, o atraso não é perdoado. Isso pode atrapalhar tanto no processo criativo (um ensaio de uma peça de teatro, a criação e estruturação de um roteiro exigem concentração extrema, pelo menos para mim), quanto na nossa vida pessoal, que passa a quase inexistente. É fundamental, na minha opinião, estabelecer limites para mim mesma e, quando possível, para as pessoas com quem me relaciono. Ainda mais exercendo dois ofícios simultaneamente: na hora do ensaio, já aviso que não vou ler mensagem, não vou atender telefone. A mesma coisa quando estou dando aula. Em relação ao descanso, como é impossível ligar/desligar a função artista, já estou acostumada a estar em um estado quase perene de prontidão, o cérebro fazendo conexões o tempo todo. Meu companheiro (que também é roteirista) já sabe que se saio correndo para o computador às 3h da manhã é porque resolvi um nó que estava travado em um roteiro durante o dia. Sempre foi assim. Até minhas cachorras já entenderam (mais ou menos) que quando ensaio, preciso de espaço. Ainda mais agora, em cartaz com três peças de teatro online simultâneas. Claro que quando tudo era feito fora de casa, era muito mais fácil me organizar. Sinto falta da sala de roteiro, da sala de ensaio, mas estou ao mesmo tempo descobrindo que, dentro das minhas possibilidades (e, não devo esquecer nunca, dos meus privilégios) posso ser extremamente maleável.
4. Qual seu maior sonho? Na esfera política, ver o nosso país elegendo governantes (de preferência mais mulheres negras) que trabalhem no sentido de desfazer as muitas estruturas injustas em que o Brasil foi sendo construído ao longo de sua história. Na esfera pessoal, realizar projetos inclusivos, que tragam oportunidades e voz para mais mulheres, projetos que sejam significativos e construtivos tanto para quem participe do desenvolvimento quanto para o público. Ainda é muito comum, infelizmente, ver mulheres preenchendo “a vaga” da roteirista mulher em uma sala. O mesmo serve para pessoas negras, trans e outros setores marginalizados. Muitas vezes a sala é formada em um primeiro momento com quem já está mais inserido no mercado, geralmente homens brancos, e só depois se considera que pelo menos uma vaga precisa cumprir parâmetros distintos. A percepção de que a criação de uma história pode se beneficiar de pontos de vista e vivências diferentes já é um avanço. Mas ainda estamos longe de um modelo em que isso faça parte da estrutura, como algo natural.
5. Qual sua maior conquista? Penso em conquistas graduais e um esforço diário para reconhecê-las — já que tudo colabora para que nós, mulheres, baixemos nossas cabeças a maior parte do tempo. Fiquei muito feliz quando ingressei no mestrado de uma das melhores faculdades de teatro do mundo. E de ter escrito e produzido uma peça em um país desconhecido. Estou muito feliz de estar em cartaz agora com três peças, de ter adaptado o texto de uma delas eu mesma, e de estar realizando o projeto durante uma pandemia, em um contexto político no qual o ofício de artista vem sendo atacado e diminuído. E, disso, o que me faz mais feliz, o que mais me preenche, é ao fim de cada sessão escutar das mulheres do público o tanto que um texto escrito há mais de dois mil anos (a “Medeia”, de Eurípedes) as fez pensar sobre sua condição de mulheres hoje em dia. Adoro as discussões em que uma espectadora conta como o feminismo estava presente em sua vida sem que ela soubesse, simplesmente porque em algum momento exigiu equidade. Isso é o que mais me move.
6. Livro, filme e mulher que admira. “Americanah” da Chimamanda Ngozi Adichie foi um livro que li ano passado e rende conversas intermináveis com minhas amigas até hoje. É maravilhoso, tanto na narrativa e no discurso quanto na maneira como ela escreve. No quesito filme, sou fã até o último fio de cabelo da Agnès Varda. Os filmes dela comunicam uma visão de mundo que me toca e me move, além de serem estilisticamente únicos. A mulher que admiro é minha mãe. Vai soar clichê? Admiro muitas mulheres, as que leio, minhas professoras, aquelas com quem trabalho, aquelas com quem conversei uma vez na rua ou no ponto de ônibus. Percebo que quanto mais experiência de vida adquiro, mais entendo o tanto que temos em comum e o tanto mais de coisas que elas tiveram de abrir mão, ou se esforçar para conseguir neste mundão. A gente às vezes foca na nossa vivência e esquece que a pessoa que nos criou passa por dificuldades, alegrias, tem feito escolhas difíceis antes mesmo de a gente existir. Em circunstâncias distintas, mas com a mesma complexidade de experiências que a vida traz para nós também. Tenho muita dificuldade de elencar uma mulher só. Tantas heroínas andando sem capa pelo nosso planeta. E muitas poderiam ter mais visibilidade e reconhecimento. Eu espero que tenham à medida que formos repensando — e refazendo– nossa estrutura social.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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