A Praça da República não precisa de cercas, precisa de pessoas

Onde há movimento e convivência, onde há espaço para artistas, vendedores, famílias e idosos, não há espaço para o medo; segurança é feita com presença, não com exclusão

  • Por Helena Degreas
  • 06/11/2024 08h00 - Atualizado em 06/11/2024 11h09
  • BlueSky
Rede Câmara Praça da República Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) propõe cercar a Praça da República e transformá-la em um parque

Observar o céu escurecendo entre as copas das árvores provoca uma sensação de renovação indescritível, como se cada cor do entardecer silenciosamente nos lembrasse de nossa conexão com a natureza e de uns com os outros. Foi com esse sentimento que, na manhã em que li o artigo de Priscila Mengue no “Estado de S. Paulo”, “Gradear Praça da República para coibir roubos? Proposta de transformar área em parque será votada’, vieram à mente as imagens da minha infância, em que corria livremente pelas praças e espaços públicos da cidade onde nasci e cresci. A Praça da República era um desses lugares. Passeava por lá com meu pai e adorava quando íamos à Rua Barão de Paranapiacaba para comprar uma correntinha de ouro 18k como presente para alguém especial. Adorava. O piso sujo, os bancos desgastados, a grama alta com cheiro de mato e o lago de água esverdeada conviviam com os fotógrafos lambe-lambe — artistas anônimos que registravam, em praças e jardins pelo Brasil, imagens memoráveis que guardo até hoje. Nada disso me assustava; faziam parte do meu ir e vir na cidade, do cotidiano de uma época. Havia outros medos, em especial, quando passeava com as mulheres da família.

Ah, o medo do “homem do saco”, aquela figura mítica e sombria que rondava o imaginário infantil, sempre à espreita para capturar os pequenos que teimavam em se afastar das mães, das tias e das avós. Mas esse medo, embora apavorante, era mais lenda que realidade, uma ameaça invisível que só ganhava forma nos sussurros de advertência. O fato é que com elas, eu o temia. Muito. Já o outro medo, este, sim, era de carne e osso: o “batedor de carteira”, o “homem mau”, que se movia com uma habilidade quase artística no meio da multidão. Verdadeiro mestre da ladroagem urbana, misturava-se entre os apressados, os distraídos, aqueles que, de bolsa aberta e olhar perdido, eram o alvo perfeito. Um toque leve, um desvio de olhar e pronto: a carteira mudava de dono sem que a vítima sequer percebesse. Ali, entre o vai e vem da cidade, o batedor de carteira era uma sombra sutil, um ladrão de passos ágeis e mãos tão leves que só deixava o rastro do vazio na bolsa ou no bolso alheio.

E assim, seguíamos a vida, no mais genuíno “estilo raiz”, como diriam os jovens de hoje. Naquele cenário urbano, o cheiro forte da urina e o lixo espalhado faziam parte da paisagem, entre aqueles que fizeram das ruas um lar improvisado e dos espaços públicos uma forma de resistência. Ali, no meio da multidão apressada, estavam também as mulheres que, em busca de autonomia, desafiavam as normas sociais e sexuais de sua época, exercendo sua liberdade de maneira própria e corajosa, em contraste com os valores tradicionais. Décadas depois, ao revisitar esses lugares que abrigam tantas memórias, reencontro a Praça da República — antes Largo dos Curros, que no século XIX atraía paulistanos com seus rodeios e touradas. Hoje, a praça ainda acolhe personagens e histórias que dão continuidade à sua função de palco urbano.

A Praça da República é, ainda hoje, um caleidoscópio humano, onde a cidade revela rostos ocultos, feridas abertas e almas à deriva. Sob a sombra das árvores, o passado e o presente se entrelaçam: ali estão os desabrigados, os trabalhadores invisíveis, os sobreviventes e os passantes eternos. São as novas gerações dos mesmos personagens que povoaram minhas memórias de infância e que ali encontram-se ainda. Assim como na minha infância, a praça permanece cheia de personagens variados, cada um ocupando seu espaço nesse palco urbano. Entre os bancos e as belas esculturas, crianças sem nome correm e tropeçam, rindo em sua inocência, ainda que o espaço público seja o único lar que conhecem. Próximas a elas, suas famílias descansam sobre cobertores gastos, ajeitando o que restou de seus pertences em malas improvisadas, sob o sol escaldante e em barracas improvisadas que conhecem como lar. São crianças que não esperam pelo amanhã, vivendo cada dia como um breve respiro, indiferentes aos olhares apressados que evitam cruzar seu caminho.

E a cada esquina, como sombras furtivas, passam os assaltantes modernos, figuras ágeis e desconfiadas que substituíram os antigos gatunos e larápios. Não há mais o toque leve do batedor de carteiras, mas uma presença direta e rápida, que ataca sem cerimônia, com um olhar urgente que busca, no susto alheio, sua sobrevivência. Eles conhecem a praça como o próprio corpo, movendo-se entre os transeuntes com a precisão dos que têm a noite como cúmplice. Por entre os passantes, avistam-se os homens-sanduíches, figuras quase invisíveis que desfilam de um lado a outro, carregando placas e panfletos, anunciando tudo, desde lojas de colchão até cursos de inglês. Esses trabalhadores vestem o corpo com o anúncio alheio, transformando-se em outdoors humanos, transitando sem serem notados, como se o peso da placa fosse também o peso da indiferença que carregam dos olhares que os ignoram.

No centro do cenário caótico, surgem os evangelizadores de rua — homens e mulheres serenos que estendem as mãos aos passantes, oferecendo promessas de salvação e panfletos como amuletos de fé. Clamam aos céus, pregando para ouvidos que fingem não ouvir, em busca de almas perdidas, enquanto o burburinho da praça encobre suas palavras. Em sua devoção inabalável, eles são figuras quase míticas, segurando Bíblias surradas e repetindo orações como se a redenção pudesse brotar entre os passos apressados. Nos cantos mais sombrios, os drogaditos, rostos marcados e olhares vazios, vagam como espectros, afastados de todos, mas presos ao vício que os consome. Ali estão, invisíveis e solitários, traçando percursos entre esquinas em busca de um alívio efêmero, esquecidos pela cidade e por si mesmos. Eles não habitam a praça; apenas passam por ela, flutuando como sombras em uma paisagem que se recusa a notá-los. Morrerão, se não pelas mãos de traficantes, pelo esquecimento… que os consome lentamente, como uma doença invisível aos olhos da sociedade. 

Espalhados por toda parte, os vendedores de bugigangas estendem suas mercadorias em lonas coloridas, caixotes que se fazem de mesas portáteis. Vendem de tudo: chaveiros, óculos de sol, bijuterias e relógios falsificados. São os comerciantes do improviso, que anunciam em vozes altas as promoções do dia, tentando atrair o olhar dos que passam. Cada produto é uma promessa, uma tentativa de transformar aquele pedaço da praça em uma pequena loja, onde o caos se converte em oportunidade. Assim é a Praça da República, ainda hoje: um palco onde diversos atores ocupam seus espaços e narram suas histórias. Entre crianças sem nome, homens-sanduíches, evangelizadores, assaltantes e drogaditos, o espaço público segue imperturbável, testemunha silenciosa da vida urbana. É o lugar dos sem-lugar, que acolhe, sem distinção, aqueles que, ainda que mesmo por um instante, ali encontram abrigo e pertencimento no mundo.

Em meio a essas figuras e à diversidade que caracteriza a Praça da República, surge o debate sobre cercá-la para combater a criminalidade. Mas será que as grades resolveriam realmente os problemas? Ou seria apenas mais uma tentativa de maquiar a realidade, de camuflar a ausência da verdadeira zeladoria que falta à cidade? Os problemas de segurança e de abandono urbano não se originam nos bancos da praça ou nas sombras das árvores antigas. Esses problemas brotam das falhas de uma gestão pública que não soube ou não quis ouvir os chamados da cidade e dos seus moradores. Uma praça não é perigosa por si só; ela se torna vulnerável quando deixada à mercê do descaso da gestão municipal.

Zeladoria urbana e segurança pública exigem mais do que muros e vigilância; precisam de cuidados constantes e planos de ocupação voltados para a população. Uma praça bem iluminada, limpa e ocupada por pessoas que nela sentem-se seguras não precisaria de cercas; a própria vida que ali se desenrola serviria como o maior inibidor de problemas. Onde há movimento e convivência, onde há espaço para artistas, vendedores, famílias e idosos, não há espaço para o medo. Segurança é feita com presença, e não com exclusão.

O que a Praça da República e tantas outras áreas públicas realmente necessitam são de investimentos contínuos, de guardas comunitários que conheçam o bairro e seus habitantes, de projetos que incluam aqueles que hoje vivem à margem da sociedade, excluídos socialmente, invisíveis às pessoas e ao poder público. A praça pede, na verdade, por uma política que compreenda que segurança e ordem são o resultado de uma cidade viva, onde o cuidado é feito de forma cotidiana, e não de modo esporádico, em vistorias esparsas ou medidas de emergência. Enquanto alguns defendem o cercamento da praça como solução, o verdadeiro perigo está na indiferença com que tratamos esses espaços vitais para a cidade e para a convivência. A Praça da República — assim como tantas outras — não é perigosa; ela é um espelho. Reflete as falhas, o abandono, e a ausência de políticas públicas que deveriam nutrir e proteger o espaço comum.

A praça não precisa de grades; precisa de vida, de gente, de projetos que incluam a todos, sem distinção. Cercar a praça é erguer muros contra nós mesmos, contra o nosso direito de conviver em um espaço que é, por definição, de todos. Talvez um dia os cidadãos e seus representantes eleitos compreendam que a verdadeira segurança não se impõe com barreiras, mas se constrói com presença, com cuidado, com uma cidade viva e compartilhada. A Praça da República permanece ali, aguardando, como um espelho das nossas escolhas — um lugar que não precisa de muros, mas de acolhimento, atenção e, acima de tudo, humanidade.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

  • BlueSky

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.