A quem pertence a cidade?

O município é construído por nós de forma coletiva; todos têm o direito de usar, de ocupar, de usufruir dos benefícios de forma igualitária e de reivindicar direitos pela qualidade de vida

  • Por Helena Degreas
  • 21/12/2021 12h10 - Atualizado em 21/12/2021 16h08
Reprodução/Acervo do Grupo de Pesquisas Paisagem e Ambiente - FAUUSP recife, pernambuco, em vista aérea Vista aérea de Recife, com edifícios de alto padrão mais perto do mar e casas populares na periferia

Pertence aos cidadãos. Resposta aparentemente simples, mas que vem demandando um trabalho enorme por parte de todos. Reclamações não faltam. Apesar das eleições municipais estarem bem distantes, a discussão de grupo do WhatsApp aqui do edifício onde moro sobre as precárias condições de acessibilidade nas esquinas da quadra e nos arredores do prédio onde moro me mostrou a importância de revisitar o assunto. Orçamento público, planejamento urbano e prioridades. Quem decide o que é melhor para mim e para todos aqueles que estão interessados nas condições de acessibilidade urbanas? A democracia representativa já não me representa mais há décadas e precisa ser gradualmente substituída por uma democracia participativa. Instrumentos legais para a sua viabilização estão disponíveis. Resta saber se nossos representantes públicos também desejam o mesmo.

Entra década, sai década, a história se repete: com sorriso largo no rosto, candidatos a vereador e prefeito esbanjam simpatia e buscam votos pelas ruas e bairros das cidades. Comem pastel no bar, tomam garapa na feira do bairro, pegam crianças no colo, prometem de tudo um pouco, às vezes falam demais coisas sem muito sentido e, comumente, esquecem tudo o que disseram para priorizar, em muitos casos, a realização de seus projetos pessoais de poder e carreira política, descartando rapidamente os interesses daqueles que os elegeram e dos quais são representantes. Destinação de verbas para construção de creches, escolas, postos de saúde, ampliação da frota de transporte público e redução de tarifas, reforma de calçadas para garantir o acesso de pessoas com mobilidade reduzida, implantação de pistas cicláveis com o objetivo de facilitar o deslocamento, manutenção e ampliação das áreas de recreação como praças, construção de habitações sociais nas áreas centrais e até coleta de lixo são demandas sociais legítimas, benfeitorias que devem ser entendidas como direitos daquele que vive em ambiente urbano e que interessam e impactam o bem-estar da coletividade e de grupos sociais. As diretrizes para o desenvolvimento urbano encontram-se nos planos diretores municipais que precisam passar por revisões periódicas para atender às novas necessidades urbanas. A formulação das prioridades urbanas devem contar com a participação das pessoas e de grupos sociais.

O que mais ouvimos dos gestores públicos refere-se à falta de recursos orçamentários para a realização de obras. Pergunto: obras para solucionar questões pontuais? Entendo que mais do que obras, precisamos perguntar: que cidade queremos? Como deverá ser a nossa cidade daqui a dez, quinze, cinquenta anos? As diretrizes do Plano Diretor ainda nos servem? De que forma se decide o que é prioridade? A prefeitura está facilitando a participação da população na revisão do Plano Diretor? Exemplo recente na cidade onde moro: as insanidades do governo federal juntamente com uma pandemia que perdura por quase dois anos destruíram a economia e, com ela, colocaram nas ruas milhões de desempregados, reinserindo o Brasil no mapa da fome mundial. Sem condições de pagar o aluguel, milhares de famílias foram sendo despejadas, mesmo após a suspensão pelo STF dos despejos e desocupações até março de 2022. Nem todos os inquilinos têm acesso jurídico “pro bono” para suas causas e passaram a morar nas ruas das cidades.

Como explicar que numa situação destas, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, priorizou recursos para a colocação de bancos para a recreação e lazer dos paulistanos no final de semana ao longo do Elevado Presidente João Goulart (Minhocão) ao invés de prover condições dignas de habitação e alimentação para as famílias que moram sob o mesmo viaduto? Sobre o viaduto, felicidade, corridas, recreação de todos os tipos com, em breve, quiosques de alimentação! Sob o viaduto, miséria, fome e desalento. Segundo a Prefeitura, o custo das novas instalações foi de R$ 800 mil, provenientes do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb). Não sei quais foram os responsáveis por esta prioridade infeliz, mas eu, cidadã, não fui consultada e discordo veementemente. Onde está a assistência à população em situação de rua ou beneficiária dos programas de assistência social, dentre eles a provisão de moradia social, previstas no Plano Diretor? A cidade pertence aos cidadãos e é construída por nós de forma coletiva.

Todos têm o direito de usar, de ocupar, de usufruir dos benefícios da infraestrutura pública da saúde, habitação, transporte, educação de forma igualitária e de reivindicar direitos quando prefeitos e vereadores zelam pelo bem-estar e qualidade de vida. Prefeitos e vereadores exercitam o poder que lhes foi conferido pelo voto por meio de suas decisões. Ao definir o que é importante para mim e para você, leitor, eles afetam a minha vida e a sua: desde o ônibus que vive atrasado e lotado mesmo com a pandemia “correndo solta” porque a empresa gestora decidiu reduzir a frota até o postinho de saúde sem médicos plantonistas para atender o cidadão que passou mal e não tem plano de saúde. A cidade é repleta de interesses e conflitos que devem ser negociados por todos aqueles que estão envolvidos: nós, cidadãos.

A desigualdade social e espacial que vivenciamos é estrutural e historicamente construída. Recentemente, encontrei a Lei 498, que datava de 14 de dezembro de 1900, criada pela Câmara de Vereadores e promulgada aqui em São Paulo pelo prefeito Antônio da Silva Prado. Ela estabelecia lá no início do século passado as “prescrições para construção de casas de habitação proletária”. Com o objetivo de atender a demanda de moradia popular, a prefeitura delegou à iniciativa privada a oferta de habitações populares para a classe trabalhadora que, até aquele momento, habitava em cortiços, cômodos de aluguel e autoconstruções em condições insalubres. Como incentivo aos “empreendedores imobiliários” da época, isentou a cobrança de impostos municipais “àqueles que construíssem habitações higiênicas e econômicas fora do perímetro urbano da cidade”.

Institucionalizou, de um lado, a mercantilização da oferta de habitações populares e, do outro, “empurrou” trabalhadores para as periferias das cidades. Parece muito com algumas situações atuais. A aporofobia (aversão ao pobre) citada pelo Padre Júlio Lancellotti recentemente ao se referir às instalações realizadas em espaços públicos por prefeitos, secretaria de obras, síndicos e empresas nos espaços públicos (lanças com pontas, pedras no caminho, muros sob viadutos) vem de longa data e, aqui em São Paulo, pode ser exemplificada por meio de decreto criado pela Câmara dos Vereadores e promulgado por um prefeito ainda nos anos 1900. Expulsar a população pobre do centro não é novidade. Além da dimensão física materializada nas diversas paisagens da cidade, existe também a dimensão política que deveria ser pauta das discussões que tratam da reforma do modelo urbano. Que tal uma cidade em que a população realize sua vida, seus sonhos e vontades com dignidade?

Desde 2001, um conjunto de movimentos populares, organizações não governamentais, associações de profissionais, fóruns e organizações da sociedade civil comprometidas com as discussões sociais por cidades mais justas, democráticas, humanas e sustentáveis vêm construindo uma Carta Mundial do Direito à Cidade. O documento estabelece compromissos e medidas que devem ser assumidos pela sociedade civil, pelos governos locais e nacionais, por organismos internacionais para que todas as pessoas possam viver com dignidade nas cidades, assegurando-se as condições materiais, culturais, sociais de sobrevivência à sua condição humana não importando a crença, opção política, orientação sexual, cabendo ao Estado a criação de programas como garantia de sua viabilização.

O século 21 foi marcado pelo amadurecimento das discussões sobre políticas urbanas, em especial, após a promulgação da lei no 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) que definiu o arcabouço institucional adotado por municípios para a participação das populações garantindo a gestão democrática urbana, dando voz à reivindicação de direitos a grupos até então invisíveis na produção do espaço urbano. São instrumentos que podem acelerar a transição de uma democracia representativa para uma democracia participativa ampliando o poder decisório das organizações não governamentais, associações e conselhos gestores para a deliberação e aprovação de todos os setores que afetam nossas vidas públicas. O direito à cidade é coletivo e difuso e pertence a quem nela vive e àqueles que nos sucederão. Participar do processo decisório, seja ele consultivo ou deliberativo, é um compromisso ético e político que deveria fazer parte da vida de todos os cidadãos com o objetivo de garantir a defesa de um bem público, social, materializado na cidade, território que pertence a todos os cidadãos e é o único capaz de garantir uma vida plena, digna e inclusiva.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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