Ao oferecer moradias em áreas desconectadas da cidade, poder público reforça desigualdades
Construções habitacionais distantes dos centros urbanos concentram população de baixa renda em regiões com menos oportunidades de emprego, saúde, educação, comércio, transporte e lazer
É na paisagem das cidades brasileiras que as desigualdades crônicas relacionadas à produção de habitações populares para atender famílias com renda mensal de até três salários-mínimos são mais evidentes: ocupações irregulares e habitações subnormais convivem com edificações sofisticadas compatíveis com cidades mundiais. Para atender à demanda, dados do Ministério do Desenvolvimento Regional mostram que seria necessária a construção de cerca de 5,8 milhões de novas moradias em todo o país para uma população que não tem condições de adquirir sua moradia a preço de mercado. Nunca é demais lembrar que cerca de 25% da população brasileira depende de aposentadorias, pensões e programas sociais de distribuição de renda para poder sobreviver.
As políticas habitacionais brasileiras foram marcadas pela construção de conjuntos de edifícios localizados predominantemente nas periferias das cidades, longe das áreas centrais dotadas de infraestrutura e equipamentos públicos, reforçando o processo de segregação socioespacial historicamente vigente desde o início da colonização brasileira. A priorização de parâmetros quantitativos na oferta de produtos imobiliários acessíveis (oferta de crédito público para aquisição da casa própria) em localizações distantes dos centros urbanos concentrou a população de baixa renda em áreas com menores oportunidades de emprego, saúde, educação, segurança pública, comércio, transporte e lazer, dificultando sobremaneira o acesso a direitos básicos. Outra característica que marca a paisagem dos condomínios de habitação social é a falta de qualidade de projeto das áreas livres destinadas à vida pública: são gramados e mais gramados que não possibilitam uso algum.
Comprar pão, ir ao mercado, levar o filho na escola, pegar o transporte coletivo para dirigir-se ao trabalho, encontrar os amigos num restaurante, pegar um cineminha, olhar vitrines, correr no parque, andar de bicicleta, tomar sol, ler um jornal na praça à sombra de uma árvore ou simplesmente flanar por aí em segurança são alguns dos hábitos corriqueiros que moradores das áreas centrais urbanas podem realizar se assim o quiserem. É possível afirmar que basta uma casa para morar bem numa cidade? Certamente não. Nossas vidas dependem da relação que temos com o lado de fora dos nossos lares. Ao oferecer moradia em áreas desconectadas das cidades, por meio de programas habitacionais no mínimo desatentos à qualidade da inserção urbana, o poder público reforça a desigualdade de acesso às oportunidades urbanas. Colabora na fragmentação social definindo, de certa forma, quais grupos tem mais ou menos acesso à infraestrutura e equipamentos públicos. Por consequência, prejudica a qualidade de vida urbana de mais de 51% dos cidadãos brasileiros de baixa renda que pagam impostos.
Apesar de todas as normas, legislações e da promulgação do Estatuto da Cidade, persiste a construção de condomínios residenciais populares formados por centenas, quando não milhares, de unidades residenciais de blocos idênticos, enfileirados, sem nenhum vínculo com a geografia física local implantados no meio de extensas áreas livres que, tal qual carimbos, marcam todo o território brasileiro. Monofuncional, o modelo de condomínio de habitação de interesse social foi planejado exclusivamente para moradia sem a previsão de serviços e comércios, como se morar fosse sinônimo de viver urbano. As áreas livres que permeiam os edifícios são destituídas de funcionalidade, sem proposta projetual que qualifique uso e apropriação dos seus moradores sendo, por consequência, abandonadas, depredadas ou ainda ilegalmente construídas com garagens e pequenos comércios.
Para a arquiteta e urbanista Verônica Donoso, professora da Universidade Federal de Santa Maria e coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Campus Cachoeira do Sul, a meta de construção de unidades habitacionais sociais deve ser repensada no âmbito do desenho urbano e na qualificação dos espaços livres públicos contextualizados a partir da realidade cultural, social e econômica do local. Acrescento à fala da colega que projetos realizados por técnicos públicos dentro de seus gabinetes não são capazes de identificar necessidades e nem mesmo definir as formas de uso da população. A produção de modelos únicos de habitação social são práticas ainda recorrentes no Brasil e se espalham em todos os Estados.
A inserção dos futuros moradores no processo de planejamento dos empreendimentos poderia ocorrer a partir do diagnóstico incorporando aspectos projetuais das unidades habitacionais e de desenho urbano junto aos bairros onde se inserem, com o objetivo de atender as expectativas dos futuros moradores, viabilizando seu uso. Realizadas estas etapas, os documentos poderiam ser encaminhados para análise e aprovação das instituições financeiras e órgãos municipais envolvidos. Donoso destaca ainda alguns exemplos positivos que ocorreram no Chile durante o primeiro governo de Michelle Bachelet (2006-2010) e que evoluíram para o Programa Quiero Mi Barrio (PQMB) centrado em construção e recuperação de espaços públicos em bairros vulneráveis. Todos eles contam com a participação da população que busca nas melhorias mais qualidade de vida urbana. Impõe-se a mudança de modelo arquitetônico condominial que prioriza as práticas e a vida social intramuros para a criação de cenários mais heterogêneos e diversos socialmente. Para a mudança, é necessária a participação da população nas discussões dos futuros empreendimentos habitacionais e intervenções urbanas na escala local e do bairro. Nas palavras da Prof.ª Drª Raquel Rolnik, “construir moradias é construir cidades”. Portanto, cabe aos governos incorporar melhores práticas de produção imobiliária para atender a população de baixa renda construindo lugares que garantam o bem-estar, a qualidade de vida e o desenvolvimento de seus cidadãos.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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