Por que fazer uma réplica da Torre Eiffel na cidade de São Luís do Maranhão?

Nas entrelinhas, o autor do projeto, senador Roberto Rocha, sugere que falta à capital certa identidade, apesar de ter sido reconhecida internacionalmente como patrimônio cultural da humanidade

  • Por Helena Degreas
  • 29/06/2021 13h16 - Atualizado em 29/06/2021 13h31
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Barbara Prado/Arquivo Pessoal Vista área da Lagoa da Jansen. Vários prédios circundados por uma lagoa, como se eles estivessem em cima de uma ilha. Vista aérea da Lagoa da Jansen, local onde o senador Roberto Rocha pretende construir a réplica da Torre Eiffel

Dias atrás, o senador Roberto Rocha defendeu em uma live realizada em rede social um projeto de sua autoria no qual pretende construir uma réplica da Torre Eiffel em São Luís do Maranhão. O local escolhido para erguer o novo marco urbano seria a Lagoa da Jansen, por tratar-se da única capital do Brasil fundada por franceses. Ao longo de sua fala, o senador citou a Torre Eiffel em Paris e a Estátua da Liberdade em Nova York como símbolos universais que não apenas marcam as duas cidades, mas são responsáveis por sua relevância cultural. De uma só tacada, o parlamentar conseguiu reduzir a importância de duas cidades mundiais a uma torre e a uma estátua. Nas entrelinhas, o senador sugere que falta à capital maranhense certa identidade, um símbolo capaz de distingui-la das demais cidades brasileiras, quiçá, mundiais. Daí a importância da inserção da réplica da Torre Eiffel na paisagem ludovicense. É uma forma de ser “lembrada” pelos cidadãos. Conhecido por seus projetos inusitados, Rocha apresentou na semana passada mais uma outra proposta ao site “O Antagonista”. Utilizando a mesma argumentação, ele descrevia a intenção de erguer uma “Estátua da Liberdade” na pequena cidade de Nova York, às margens da barragem de Boa Esperança, no interior do estado maranhense, como forma de promover o futuro balneário. “É um projeto lindo”, exclamou.

O senador desconhece que as paisagens são construídas ao longo do tempo e resultam sempre de um processo de acumulação de formas, objetos, técnicas e instrumentos criados pelo ser humano para ajudá-lo a viver em um contexto de organização social. É na mistura de ruas, prédios, florestas, jardins, rios, praias, formas de vida, tradições, culturas, etnias que a paisagem materializa o que tem de espetacular: a visão de um mosaico e de uma mistura de tempos e objetos datados visíveis por todos, sempre e em qualquer lugar. Para o parisiense, a Torre Eiffel simboliza a construção de um monumento para o evento “Exibição Universal” que ocorreu em 1889 em Paris. Presente do governo francês para os Estados Unidos, a Estátua da Liberdade simboliza a independência da colonização inglesa. Nos dois casos, seu valor simbólico ultrapassa o papel de recordação de viagem ou ponto adequado para tirar uma selfie e postar nas redes sociais.

Antes mesmo dos franceses, o Maranhão já era densamente habitado por povos indígenas que, resistindo à ocupação portuguesa promovida pelo tesoureiro João de Barros em 1535, levaram ao abandono da colônia de Nazaré, provavelmente localizada onde hoje encontra-se a cidade de São Luís. Foi só depois, no ano de 1612, que Daniel de La Touche construiu um forte nomeado de Saint-Louis e fundou oficialmente a vila ou ainda, a França Equinocial. Três anos depois, em 1615, os portugueses retomaram o lugar expulsando os franceses e, décadas depois, também os holandeses, iniciando a colonização portuguesa. Informações como essas encontram-se disponíveis em livros escolares, em plataformas dedicadas ao turismo e no endereço eletrônico da secretaria de turismo do Estado do Maranhão, bem como no da Prefeitura de São Luís. Basta consultar.

“A torre que o senador pretende construir será implantada na Lagoa da Jansen. Esta lagoa, ou melhor laguna, é tida pela população como referencial urbano. O igarapé da Jansen começou a ser represado após 1973, e formada a laguna definitivamente no governo de Luís Rocha (1983-1987), pai do senador, quando foram feitas as obras da Avenida Ana Jansen e Avenida dos Holandeses no trecho Ponta D’Areia. Entretanto, desde 1950, já havia um projeto rodoviário, preâmbulo do Rodoviarismo Maranhense, para expandir a cidade para o nordeste da Ilha, e um projeto de um parque inspirado na modernidade Howardiana (Ebenezer Howard, com parquinhos, pedalinhos, laguinhos, quadras e outras coisas romantizadas dessa tendência do século XIX), idealizado pelo engenheiro Rui Mesquita. O resultado é que, depois da urbanização final da Lagoa da Jansen em 2002 e da valorização imobiliária do entorno, a ‘Lagoa’ tornou-se um marco referencial em si”, afirma a professora arquiteta urbanista Barbara Irene Wasinski Prado, Pesquisadora e Coordenadora do Laboratório da Paisagem e do Ambiente Construído do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual do Maranhão. 

O que marca a paisagem da cidade é o mosaico, a mistura de processos e elementos que foram sendo construídos e sobrepostos ao longo dos anos por todos os povos que ocuparam e que atualmente vivem na cidade: os indígenas, os portugueses, os franceses, os holandeses, os portugueses novamente e todos os que habitam hoje o local. Embora para o senador a cidade não apresente nada memorável ou digno de recordação, a preservação da paisagem cultural e ambiental de São Luís é tão significativa para o mundo que o acervo arquitetônico, urbanístico e ambiental composto por cerca de 3.500 casas e sobrados ricamente azulejados, mirantes, solares, centros culturais, museus, portos, fontes públicas, praças, parques e sistemas naturais foi reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1997 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sediada em Paris. O tombamento apresenta a cidade como referência em si e, como tal, é lembrada pelo mundo como Patrimônio Cultural da Humanidade. 

Reggae, bumba-meu-boi, sururu com leite de coco (recomendo), peixada maranhense (amo), sorvete de tapioca (adoro) e outras delícias satisfazem a todos os gostos: do cidadão ao turista. A cidade é repleta de histórias misteriosas, lendas que são parte do folclore local. Conto aqui uma delas: dizem que a carruagem de Ana Jansen, mulher poderosa e rica, conhecida por seu caráter forte e por maltratar seus escravos, teria sido condenada a vagar por toda a eternidade pelas ruas da cidade numa carruagem assombrada. O coche, amaldiçoado, parte em noites de quinta para sexta-feira do Cemitério do Gavião conduzido por um escravo sem cabeça e puxado por cavalos igualmente decapitados. Outra versão conta que, no lugar dos cavalos, está uma mula sem cabeça. Como leitora voraz de histórias sinistras e de terror, fico com a última versão: é parte do folclore brasileiro. Para mim, a mula sem cabeça é um verdadeiro mito do Brasil. Outros que se autoproclamam mito não passam de conversas para boi dormir. Prado reitera que “a torre, mais do que poluição visual, seria uma construção despropositada e incompatível com a condição atual dessa Unidade de Conservação, o Parque Ecológico da Lagoa da Jansen”. Concordo com a colega. Para que inserir a réplica da Torre Eiffel numa cidade reconhecida internacionalmente, menos pelo senador, como patrimônio cultural da humanidade? Ideias desconectadas da realidade social, ambiental e cultural costumam ser vistas pelos cidadãos e até mesmo pelos turistas que o senador pretende atrair como descabidas, despropositadas, megalômanas ou simplesmente desarrazoadas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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