Até quando a cultura pública manterá viva a política desenvolvimentista em detrimento da sustentabilidade?
A procrastinação de programas e ações robustos vindos das três esferas de governo em projetos voltados ao cumprimento das metas da Agenda 2030 levanta questões urgentes
A caminho da universidade observo, desanimada, uma obra viária grotesca que, além de não dar vazão ao trânsito infernal nos horários de pico como prometido, também altera, confina e tampona, parcialmente, as águas de um rio que atravessa uma boa parte da cidade. Sobreposição de uma estrutura viária sobre o leito antes raso e fluido, é fruto de uma engenharia civil “de resultados” gerada nos anos em que “roubar, mas fazer” eram praticamente sinônimos de virtude política.
O fato é que o monstrengo deixou à mostra, entre os vãos de vigas e pilares, janelas em que posso apreciar tanto as águas turvas de uma densidade indescritível, quanto fétidas em qualquer condição climática. Pensar em corpos desovados na calada da noite através dos pequenos buracos deixados entre a pista e o viaduto, talvez fruto de brigas internas entre milícias, parece uma realidade tão provável quanto aquela feiura imposta à paisagem por tal “obra de arte” civil. Cada vez mais penso em utilizar as imagens que sou obrigada a experienciar em um conto de terror, provavelmente.
Os rios e córregos, antes naturais e vivos, encontram-se ocultos, mortos e enterrados e cujo odor, aponta o desague de esgotos de toda sorte. Quantos dos leitores viram de perto uma nascente no meio de suas cidades? Conheço uma. Perto de onde moro, luta com a ajuda de fiéis ativistas contra ações do mercado imobiliário e o tempo do gestão pública, lento, como usual, nas ações necessárias à sua proteção.
A falta de ar que parece crônica, a canseira, os olhos ardendo e as inúmeras viroses que vem acometendo a mim e aos demais cidadãos em função da baixíssima umidade do ar, do calorão fora de época e do céu escuro proveniente da fumaça das queimadas Brasil afora, apontam a leniência, a procrastinação e a falta de vontade que governos federal, estaduais e municipais vem mostrando secularmente em suas ações ambientais, principalmente, àquelas relacionadas às políticas hidrológicas. Rico hidricamente, é o que estudantes aprendem nas escolas, é de se perguntar o que foi feito destas águas desde que aqui aportaram os colonizadores portugueses em nosso país.
“Desenvolver primeiro e pagar os custos da poluição mais tarde”
A frase memorável acima, foi proferida alto e bom som, durante a Conferência de Estocolmo de 1972 pelo Ministro Costa e Cavalcanti que expressou a posição do Brasil em defesa do uso irrestrito dos recursos naturais em detrimento da preservação ambiental contrastando, sobremaneira, coma posição dos representantes dos demais países presentes. Priorizando o desenvolvimento econômico, o país, por meio de seu ilustre representante, argumentou que a limitação das atividades industriais prejudicaria a economia brasileira emergente, adotando a postura de “desenvolver primeiro e pagar os custos da poluição mais tarde” evidenciou as tensões entre sustentabilidade e desenvolvimento econômico dando início às discussões globais da agenda urbana sobre meio ambiente e desenvolvimento.
Os rios urbanos sempre foram mais do que simples cursos d’água. Observando como hoje encontram-se nas cidades, eles refletem as escolhas que fizemos enquanto sociedade, as prioridades que estabelecemos e, infelizmente, os erros que cometemos ao longo de nossa história política. Desde os primeiros dias de ocupação do território pelos exploradores portugueses, o uso natural dos rios para banho, pesca e transporte foi lentamente sendo substituído por novos usos.
Essas intervenções, implementadas como soluções práticas e imediatas para irrigação e abastecimento dos povoados, vilas e cidadelas que surgiam, careciam de qualquer planejamento prévio, respondendo apenas às necessidades urgentes, tanto sociais quanto econômicas. Apesar das técnicas rudimentares da época, os danos, mesmo que não percebidos de imediato, começaram a se acumular pela alteração do curso natural das águas, impactando a vida que dependia desses fluxos. A cultura de uso inconsequente e exploração dos rios abundantes foi iniciada.
De lá para cá, o curso das águas e seu destino materializaram as decisões de poder do contexto político, social e técnico da época marcando nossas paisagens e nossas vidas urbanas expondo, como num museu a céu aberto, a convivência, nem sempre pacífica, dos tempos históricos.
Num esforço para controlar doenças e pragas, os rios passaram desde o final do século XIX por processos drásticos de retificação e canalização, drenando margens e várzeas, retirando a vegetação, deixando tudo pronto, limpo, para ocupação e construção. Rio de Janeiro e São Paulo foram exemplos dessa transformação apontando as soluções modernizantes que as demais cidades poderiam seguir. Mantem-se a imagem das águas em abundância e do uso, inconsequente.
Os rios, antes sinuosos e naturais, foram confinados em canais de concreto, as margens deram lugar a avenidas, a vegetação foi sendo lentamente substituída por casas, edifícios e avenidas. Tecnologias incapazes de substituir a forma do relevo, os rios continuaram, como esperado, no fundos dos vales. As decisões políticas, por sua vez, permaneceram as mesmas e, décadas depois, negligenciando a lei da natural (e da gravidade), as margens dos rios que enchem de água em períodos de chuva intensa continuam, até hoje, a receber vias destinadas a veículos. As políticas gestão das águas superficiais, continuam na mesma situação.
O preço dessas intervenções veio na forma de enchentes mais frequentes, piora na qualidade do ar e a perda da função ecológica que esses rios desempenhavam nos ambientes de vida da população urbana. Como agentes públicos permitiram a construção sobre áreas reconhecidamente, ao menos pela ciência, em áreas naturalmente, geograficamente, quero dizer, alagáveis?
No auge da ideologia desenvolvimentista, que se manteve ao longo da ditadura militar, os rios passaram a ser vistos como obstáculos e assumiram o papel de criaturas monstruosas a serem domadas para promover o crescimento econômico. A construção de barragens, represas e de lajes ou túneis sobre os rios, transformando-os em um canal subterrâneo (como aquele descrito no início da coluna) de água morta, tornou-se uma prática em terras brasileiras. Descaso, desleixo público ainda são comuns em rios que atravessam cidades brasileiras. Há exceções que ainda não tiveram a oportunidade de “contaminar”, positivamente, a ideologia ainda, politicamente desastrosa, dominante.
O impacto dessas obras foi imenso: cursos d’água foram fragmentados, comunidades ribeirinhas foram desalojadas e os ecossistemas aquáticos sofreram com a perda de biodiversidade. Nas cidades, a ausência secular de políticas públicas habitacionais para a população mais pobre que, migrante ou não, vinha em busca de trabalho para o sustento, a urbanização se deu na informalidade, gerando bairros inteiros constituídos autonomamente e, em terrenos, impróprios, dentre eles, margens de rios. Neste ponto, cidade formal e informal, central ou periférica, manteve o padrão de impermeabilização das bacias hidrográficas com a ciência das autoridades públicas que, inertes, como de costume para o planejamento e solução da gestão dos rios urbanos, foram (e ainda o são) responsáveis pelos problemas de escoamento e aumento das enchentes, que se tornaram uma constante nas grandes cidades. Havia a possibilidade de mudança. Desde os anos de 1970. Não era a prioridade.
Porém, com a redemocratização e a entrada do século XXI, algo começou a mudar. Surgiram novas abordagens, influenciadas pela crescente preocupação ambiental e pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que impregnaram países e gestores públicos como uma lufada de ar fresco e limpo. Por meio de seus gestores públicos, cidades começaram a adotar práticas que há décadas pareceriam impensáveis: a renaturalização dos rios e, mesmo estreitas em alguns casos, a reintrodução da vegetação nativa e recuperação, mesmo que parcial, das funções ecológicas que fundos de vale perderam ao longo do tempo. Com elas, veio o uso social e recreacional para cidadãos que, em suas margens, podem desfrutar, ao longo de riachos, córregos e rios do prazer de estar em áreas verdes.
Extensão do conceito de renaturalização, essas iniciativas se estenderam também para a criação de infraestrutura verde tais como parques lineares, jardins de chuva e telhados verdes passaram a fazer parte do planejamento ambiental urbano com soluções capazes de reduzir as temperaturas, melhorar a umidade do ar e criar espaços de recreação e, no meu caso, reintegração com elementos naturais escassos para a população. Não o suficiente para resgatar a minha saúde e a dos demais cidadãos, infelizmente.
É claro que não se pode reverter séculos de intervenção da noite para o dia, mas as lições do passado estão finalmente sendo aprendidas. A renaturalização dos rios, a criação de espaços verdes e a adoção de soluções sustentáveis são sinais de que estamos no caminho certo. No entanto, é preciso continuar avançando, reconhecendo que o desenvolvimento urbano não deve ser inimigo do meio ambiente, mas sim seu aliado.
Os rios brasileiros, que carregam consigo as histórias de nossa nação, merecem mais do que serem confinados em canais de concreto. Nós também, como cidadãos, merecemos bem mais empenho das autoridades públicas na melhoria das condições ambientais de nossas cidades. Criar equipes emergenciais para solucionar incêndios e calamidades provocadas por chuvas torrenciais é trabalho de planejamento e prevenção com ênfase na saúde pública. Vamos começar pelos rios e córregos, por que não? eles devem fluir livres, como parte de uma cidade que valoriza sua história, cuida do presente e planeja um futuro em que as águas possam correr limpas e abundantes, para o bem de todos.
Você acredita que a priorização do desenvolvimento econômico sobre a sustentabilidade ainda é uma prática comum nas políticas públicas brasileiras?
Você deve selecionar uma alternativa.
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*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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