Como demolir e descartar resíduos da construção civil? A rastreabilidade pode ser a solução

Para o arquiteto holandês Thomas Rau, sociedade, setor público e empresas têm que pensar em edifícios como depósitos de materiais; banco de dados criado por ele facilita reutilização do entulho

  • Por Helena Degreas
  • 19/10/2021 09h00 - Atualizado em 19/10/2021 09h29
Reprodução/Instagram/@rau.architects Interior do banco Triodo com um amplo espaço aberto, espreguiçadeiras e cadeiras, num ambiente de cores claras, que transmitem calma, e uma sala de reunião adjacente do lado esquerdo Banco Triodos, na Holanda, foi o primeiro edifício de escritórios remontável em grande escala projetado pelo arquiteto Thomas Rau

Líderes de 196 países, membros do setor empresarial e de combustíveis fósseis, ativistas e grupos com interesses nas questões climáticas se reunirão em Glasgow, na Escócia, entre os dias 1 e 12 de novembro, para discutir os planos para a descarbonização do planeta e detalhar as ações que estão sendo realizadas para limitar o aumento das temperaturas globais para abaixo de 1,5ºC. Gestores de várias cidades em todo o mundo comprometeram-se a alcançar “emissões líquidas zero” até 2050 por meio de planos e estratégias que buscam benefícios sociais e ambientais tangíveis e mensuráveis. Dentre os setores, destaca-se o da construção civil, por ser a indústria que cria enormes emissões de CO² graças ao desperdício dos materiais provenientes de suas demolições.

Alcançar “emissões líquidas zero” significa uma espécie de “neutralidade climática” e que ocorre quando todas as emissões dos gases de efeito estufa (GEE) que forem causadas pela produção humana alcançarem o equilíbrio com a remoção de gases da atmosfera. A retirada dos GEE pode ocorrer pelo plantio e recuperação de florestas e pela captura e armazenamento direto do ar (DACS) por exemplo. Tijolos, ferragens, madeiramento, cerâmicas diversas… Demolir e construir a partir “do zero” há muito deixou de ser sinônimo de desenvolvimento urbano e progresso. A mudança de mentalidade foi iniciada ainda no século passado, quando as primeiras conferências internacionais sobre o desenvolvimento sustentável definiram as diretrizes rumo a um compromisso transgeracional no qual o planeta Terra seguirá saudável e sustentável para o uso das futuras gerações. 

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) aponta que o setor da construção civil é responsável por 36% do consumo de energia, 38% das emissões de carbono e 50% do consumo de recursos naturais durante todo o ciclo de produção. Ao demolir, o setor se transforma numa espécie de devorador de recursos naturais que se satisfaz a partir da eterna extração, abandonando aquilo que não lhe serve. Em época de escassez de recursos e falta de dinheiro, é preciso repensar hábitos e comportamentos. No Brasil, o investimento na produção de conhecimento, ciência e pesquisa visando a reutilização dos resíduos e entulhos originários da construção civil é insignificante frente à possibilidade de ganhos concretos ambientais, sociais e econômicos quando reincorporados ao processo de produção. Já o entulho proveniente da construção civil representa aproximadamente 31% dos resíduos locais de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, por exemplo. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, o cimento utilizado para fazer o concreto das novas edificações responde por cerca de 7% das emissões mundiais de carbono. 

Em 2019 uma startup canadense chamada CarbonCure produziu uma tecnologia capaz de introduzir CO² em concreto fresco, “capturando o que é considerado um problema mundial” e transformando-o em mineral integrado ao processo. O concreto se torna mais resistente, melhora a qualidade das estruturas, reduz os custos da produção e deixa de produzir CO², colaborando no cumprimento das metas propostas pelo Acordo de Paris. Tecnologias e pessoas interessadas em desenvolvê-las, não faltam. Outro exemplo que aponta para uma mudança de cultura, já  adotado por empresas e bancos (ABNAmro e Trinko Bank), foi desenvolvido pelo arquiteto holandês Thomas Rau, que vem trabalhando ativamente na elaboração de métodos e instrumentos para o reaproveitamento de matérias-primas. Em entrevista para o jornal The Guardian, Rau afirma que sociedade, setor público e empresas têm que pensar em edifícios como depósitos de materiais. Muda-se o princípio ético: o foco da maximização do lucro passa a ter papel secundário frente à preservação das matérias primas. 

Em suas pesquisas, ele desenvolveu um banco de dados público de materiais que compõem os edifícios existentes e seu potencial de reutilização. Até o momento, conseguiu catalogar em seu banco de dados cerca de 2,5 milhões de metros quadrados de materiais de construção, e sua aplicação mais recente é na cidade de Amsterdã. Instituiu o conceito de “passaporte digital”, rastreando a procedência e o desempenho de cada um dos elementos utilizados nas construções: é como um RG, que dá identidade ao material, permitindo a especificação do seu valor numa obra, além da recuperação, reciclagem e reaproveitamento. Sua ideia foi acolhida pelo governo holandês, que não apenas introduziu incentivos fiscais para os stakeholders envolvidos na construção civil que apresentassem a rastreabilidade dos componentes de suas edificações como também projeta a obrigatoriedade deste requisito para todas as construções que serão realizadas em breve. Com o desenvolvimento da tecnologia Building Information Modeling (BIM), o passaporte é factível, pois trata-se apenas da incorporação de mais uma camada de informações ao projeto e à obra. A Holanda planeja alcançar uma economia 100% circular até 2050.

O Brasil tem todas as condições de retomar a liderança ambiental nas discussões da agenda ambiental internacional. Planos climáticos nas três esferas de governo já existem nas principais capitais e em todos os Estados. Falta ambição. Atualmente, falta também sensibilidade, inteligência voltada ao negócio, investimento em ciência visando à geração de novas tecnologias… E mais: falta capacidade para compreender o alcance que o atendimento às metas ambientais trará como benefício para a geração de novos negócios, empregos e recursos financeiros. Falta também a vontade política do principal mandatário brasileiro que, entre uma fala e outra, mostra profundo desconhecimento, ignorância e desprezo pelo patrimônio e pela população brasileira, expondo sua incapacidade para elaborar estratégias que objetivem alcançar as metas assumidas nas conferências anteriores, levando o país ao protagonismo na implantação de políticas ambientais e produção de novas tecnologias, resgatando desta forma, sua imagem frente aos demais países e líderes mundiais.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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