É preciso ir à luta para proteger a história urbana; o mercado imobiliário não fará isso por você
Caso da Chácara das Jaboticabeiras em São Paulo é emblemático da luta pela preservação do patrimônio cultural e arquitetônico da cidade
Na semana passada, escrevi sobre os benefícios e malefícios causados pela verticalização que vem ocorrendo ao longo dos eixos de estruturação da transformação urbana no município de São Paulo previstos pelo Plano Diretor, promulgado em 2014, durante a gestão do prefeito Fernando Haddad. Apesar das críticas feitas por alguns leitores que mencionavam o “progresso”, descrições sobre o inferno em que se transformou a vida comunitária no miolo dos bairros afetados pelas novas propostas urbanísticas foram objeto de testemunho dos antigos moradores que, como eu, perderam não apenas a insolação e a ventilação direta de suas unidades residenciais (questão de saúde) como também se viram na obrigação de colocar cortinas do tipo blecaute para manter a privacidade necessária à preservação da dignidade da vida privada.
A vida social e as relações comunitárias que ocorrem no cotidiano urbano dos moradores estão passando por profundas transformações. As costureiras, sapateiros, as quitandinhas, mercados, farmácias e estabelecimentos locais estão sendo “defenestrados” pelos novos empreendimentos cujo térreo comercial previu locações para redes comerciais de grandes marcas. Dificilmente o chaveiro ou a costureira do bairro terão condições financeiras para arcar com a locação comercial de um único metro quadrado no térreo dos novos edifícios vez que os valores de venda e locação ficaram ainda mais caros.
Reitero o que escrevi semana passada: o adensamento é necessário em locais onde a infraestrutura e os equipamentos urbanos pagos com os recursos de todos os cidadãos foram instalados. Transportes, escolas e postos de saúde, por exemplo, devem ser utilizados por todos os cidadãos e não apenas por alguns moradores locais. Minha discordância reside no fato de que números, taxas de ocupação e coeficientes de aproveitamento geram formas urbanas que podem prejudicar até novos moradores. Com avidez, o miolo dos bairros está sendo vagarosamente corroído pelas incorporadoras que veem a cidade apenas como um excelente negócio para a geração de lucros.
Um caso semelhante foi a construção do Parque Augusta, que se arrastou por cerca de 40 anos. As discussões acirradas entre associações de moradores, construtoras, Ministério Público e prefeitura são alguns exemplos do que veremos no futuro: ou os cidadãos se organizam em coletivos e associações de bairro, ou nos veremos cada vez menos representados nas necessidades cotidianas de nossos bairros. Nesta coluna, comento sobre a importância das reivindicações do Coletivo Chácara das Jaboticabeiras, que almeja preservar o patrimônio local da Vila Mariana, as ações dos órgãos de preservação e o papel da construtora que reivindica a liberação da regulamentação urbanística existente para a verticalização. No artigo “A experiência do Coletivo Chácara das Jaboticabeiras”, a arquiteta e urbanista Maria Albertina Jorge Carvalho descreve as idas e vindas da população em prol da preservação de um pequeno território que é parte da história urbana, arquitetônica e ambiental do bairro.
Em 2018, moradores da Vila Mariana formaram um coletivo para defender o perímetro original dos loteamentos da “Villa Jaboticabeiras”, traçado na década de 1920 por Prestes Maia e Bayman, da mudança urbana agressiva que teve início após a aprovação da nova legislação pela Câmara Municipal de São Paulo em 2016. O grupo contratou urbanistas, arquitetos, ambientalistas advogados e deu entrada com um pedido de tombamento em 3 de maio de 2019 no Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), órgão municipal competente. A solicitação de tombamento estruturou-se em três eixos de relevância: o valor histórico arquitetônico e do traçado urbano; a importância social, dadas as relações afetivas e de pertencimento construídas com o tempo; e a importância ambiental, no que tange às condições topográficas, hidrográficas (existem nascentes no local), geológicas, de vegetação e fauna que se colocam frágeis diante das aceleradas mudanças previstas pelos novos espigões.
No dia 22 de novembro, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp) de São Paulo aprovou o tombamento parcial de uma área de aproximadamente 50 mil m² na Chácara das Jaboticabeiras, a poucos metros do Metrô Ana Rosa. Porém, a área de preservação é menor do que aquela já aprovada em estudos anteriores. O coletivo Chácara das Jaboticabeiras irá recorrer da decisão. Pessoalmente, considero que estão corretos. Faz parte da democracia: se o cidadão não se vê representando nas decisões tomadas pelos órgãos públicos, ele deve sim recorrer, questionar e garantir seus direitos.
Visitei o local no final de semana e vi que as ruas de paralelepípedos e suas calçadas são estreitas e não comportam o adensamento populacional e de automóveis que serão gerados pelos futuros edifícios. O mesmo se pode dizer da drenagem e coleta de esgoto que, datados de um passado longínquo, serão incapazes de atender aos novos moradores. E o que fazer sobre trechos que sofrem alagamentos? Não sei como os futuros empreendedores pretendem resolver a questão. O que chama a atenção deste caso em especial é a ameaça iminente impulsionada pela legislação urbanística, que desconsidera os estudos realizados por profissionais contratados pelo coletivo para identificar as áreas de exceção que planos realizados na macroescala são incapazes de evidenciar. Os valores urbanísticos, ambientais e arquitetônicos da área contam a história das pessoas e dos bairros de São Paulo.
É de se estranhar a autorização para a demolição de casas históricas como a que pertenceu à família do ex-prefeito Prestes Maia. Em uma cidade europeia, provavelmente a construção seria mantida com o uso de incentivos fiscais e aberta ao público para fruição de atividades culturais. Não foi o que aconteceu. Nas redes sociais, o coletivo afirma que o parecer favorável ao tombamento contraria os pareceres técnicos sobre a melhor forma de preservação do patrimônio e permite a construção de edifícios altíssimos em área que compõe o perímetro de proteção. Os lotes não preservados pela decisão do Conpresp serão o início da demolição e descaracterização do miolo da quadra. Consigo ver as betoneiras, as caçambas, os caminhões de entulho sobre os paralelepípedos e roçando nas copas baixas das árvores centenárias destruindo tudo por completo. Em entrevista a um periódico de grande circulação, a construtora – proprietária de outras áreas na mesma região e lotes no miolo do quadrilátero – argumentou que “investiu muito alto” no local, dando a entender que terá prejuízos caso a solicitação de tombamento não acolha suas solicitações.
Quem terá mais prejuízo? A construtora, que deixa de ganhar alguns recursos e precisará revisar seu projeto, ou a população do bairro da Vila Mariana, que perde suas referências? Um breve olhar sobre a plataforma GeoSampa é capaz de mostrar os outros milhões de km² na mesma região prontos e disponíveis para compra e venda. Encontram-se a poucos metros de distância da mesma estação de metrô Ana Rosa e do local da disputa. Ou seja: não é necessário construir sobre a área na qual os moradores defendem o tombamento total. Não seria o caso de a construtora buscar locais que demandam seus serviços? Como o “palimpsesto” citado no livro “São Paulo: Três Cidades em um Século”, de Benedito Lima de Toledo, a cidade se apresenta como “um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos para receber outra nova”. No que depender dos membros do Coletivo Chácara das Jaboticabeiras e da Associação de Moradores da Vila Mariana, a história do local e das pessoas permanecerá com as mesmíssimas conformações, espaços e funcionamento por muito tempo.
O que você considera mais importante, preservar o patrimônio histórico, cultural e ambiental ou demolir e reconstruir bairros e cidades?
Saiba mais na coluna de @helenadegreas.https://t.co/omb9G3UQUl
— Jovem Pan News (@JovemPanNews) November 30, 2021
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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