O fim das minhas manhãs ensolaradas e as novas varandas-gourmet
Vários edifícios começaram a surgir em frente à janela de casa: não satisfeitos em invadir meu lar com gritarias e ruídos intensos de obras imensas, aos poucos roubaram minha vista
O celular avisa que é hora de acordar. Levo cerca de cinco minutos para juntar a alma ao corpo. Preparo a refeição da manhã para família. Adoro vê-los descabelados, se arrastando até a mesa da cozinha para comer. Pego o jornal e me dirijo com a xícara de chá até a janela da sala, escoltada por Chanel e Ricota, devidamente alimentadas. Afundo numa poltrona macia para ler as colunas e artigos. Pertenceu ao meu sogro. Lembro-me dele fazendo o mesmo que eu. Sensação boa. Apensar do Twitter e dos demais apps, me alimento das notícias em papel, hábito do qual não me desfaço. Em março do ano passado, quando o confinamento começou, tive como companhia a paisagem que se descortinava da minha janela: dela, conseguia alcançar, em dias sem neblina e poluição — e foram muitos, graças à pouca circulação de automóveis —, a Serra da Cantareira, a região dos Jardins e um mar de casinhas e prédios espalhados nesse mundão que é a cidade de São Paulo. O ar fresco da manhã e o sol entrando preguiçoso de certa forma me confortavam, preparando-me para o trabalho que se prolongaria até a noite.
Com o passar das semanas, vários edifícios começaram a surgir em frente à minha janela: não satisfeitos em invadir meu lar com algazarras, gritarias, além de todos os ruídos intensos de obras imensas, aos poucos foram roubando minha vista, meu sol e meu ar fresco, subindo de tal forma em altura que pareciam não caber nos terrenos. “Peru no pires.” Lembro-me todos os dias que, como urbanista que sou, a importância do adensamento urbano em corredores providos de transporte público. Esparramar a cidade território afora encarece o bolso de todos os cidadãos, pois é preciso levar escolas, postos de saúde, serviços públicos e infraestrutura para todo mundo, sem distinção. Cidades compactas. Não discuto a necessária presença do Estado em todas as suas dimensões e formas nos bairros da cidade. Mas me pergunto: a que preço? Verticalizar com qual critério? Não seria o caso de prefeitos, vereadores e organizações da sociedade civil apresentarem propostas que atendam a população, e não apenas o mercado imobiliário? As universidades vêm discutindo o tema há anos, mas as mudanças não são discutidas com a devida importância nas câmaras de vereadores, nas salas de secretarias… Estão distantes da agenda pública urbana dos prefeitos.
Da janela via a paisagem que se descortinava. Que cidade é essa que me obriga a assistir às rotinas do vizinho que mora ao lado ou logo em frente às minhas janelas? Minha rotina continua a mesma, mas encarar os horizontes que construtoras e imobiliárias, juntamente com o Plano Diretor e demais regulações urbanas, me obrigam a ver, é indigno, horrível, não tenho palavras. Obrigam-me a permanecer num cinza eterno, com uma vista horrível, povoada de varandas gourmet. “Sonho de consumo dos novos moradores”, informam as incorporadoras. Não é bem assim. Só me restou observar esse fenômeno e tentar explicá-lo. Extensões da sala de estar, as varandas gourmet têm decoração primorosa, uma série de equipamentos e instalações para todos aqueles que, com excesso de tempo livre para passar dias inteiros cozinhando, assam pizzas, fazem churrascos, plantam hortaliças e pomares para ter sempre à mão algo fresco para as refeições, que diariamente são servidas na sala de jantar aos amigos e familiares. Essa é a realidade vendida por corretores, folders e empresas de marketing. Tudo aquilo que não se tem —e é apresentado como fundamental para uma casa contemporânea —, está lá. Eu completaria: coisas que nunca vou precisar porque não são parte da minha vida. O que os compradores não perceberam é que as varandas de hoje substituíram a antiga sala de jantar, praticamente inexistente em vários condomínios verticais contemporâneos.
Sem a sala de almoço ou jantar, os apartamentos ficaram menores: o tal espaço vendido na planta como varanda gourmet é uma área livre que não interfere no coeficiente de aproveitamento, pois não é computada como área construída, mas, sim, como área livre. Por esta razão, ela é entregue sem o envidraçamento para a aprovação na prefeitura e para os compradores, que dependerão da convenção de condomínio para fechar, ou não, a varanda vendida como gourmet, verdadeira área de lazer e recreação para a família contemporânea. Excelente negócio para as empresas do ramo de construção civil, que, ao incorporarem também a outorga onerosa, constroem espigões altíssimos em lotes minúsculos. Tanto os moradores novos quanto eu teremos que nos encarar frente a frente por muitos anos. E sem sol. Os leitores já devem ter observado como os imóveis vendidos vêm diminuindo seu espaço útil, enquanto as varandas estão, em alguns casos, aumentando em área. Os benefícios são bem maiores para quem constrói e vende, certamente.
As varandas brasileiras são fruto de uma miscigenação entre a cultura portuguesa e a cultura indígena. A varanda de origem moura e asiática chegou ao Brasil por meio dos portugueses, difundindo-se em todo o território como elemento necessário para a adequação climática das construções em terras quentes, chuvosas, tropicais. Além de proteção climática, ela assumiu vários usos e funções, atuando como local de descanso para “tomar a fresca” após as refeições, pois era sombreado, fresco e abrigado das intempéries. Embora coberto, mas não construído, localizado entre a frente da casa e a rua, era o espaço de convívio social, o local para os jogos das crianças. Tinha a função de filtrar a esfera de vida pública, o que acontecia nas ruas, da esfera de vida privada, resguardando a casa e a família dos olhares da rua. De acordo com o arquiteto Carlos Lemos, as casas portuguesas, quando implantadas no Brasil, colocaram a cozinha para o lado de fora, ligando-a por uma varanda à casa principal, apropriando-se dos hábitos da cultura indígena. Nada parecido com o que temos aqui nas terras brasileiras. Não lembro, no momento, de nada parecido em outras cidades mundo afora.
Enquanto folheava o jornal e apreciava minha xícara de chá pela manhã, observei várias das varandas gourmet e pensei em descrever o que vejo diariamente depois que minha paisagem e meu sol foram roubados pelo Plano Diretor de São Paulo e suas regulamentações urbanísticas e construtivas. Nem todas as varandas são iguais em forma e uso. Algumas foram envidraçadas, outras, não. A fachada ficou estranha. Vi roupas, toalhas e lençóis pendurados em cadeiras que assumiram a função de varal improvisado, vez que as lavanderias ou são coletivas (e pagas por hora de uso) ou têm espaços exíguos para lavar e secar roupas. As mais interessantes, para a minha curiosidade, transformaram-se em depósitos de tranqueiras que não cabem nas novas moradias: vê-se de tudo um pouco. Pranchas de surf, bicicletas, brinquedos espalhados, bolas (muitas bolas), ventiladores, caixas empilhadas para todos os gostos. Algumas transformaram-se em lar dos pets, como casinhas de cachorro. Logo que os felizes proprietários dos novos empreendimentos se mudaram, cheguei a sentir, nos finais de semana, o cheiro do churrasco tão esperado oferecido aos amigos. Pizza nunca senti. Aos poucos, o uso foi ficando cada vez menor, até que parou por completo. Perceberam que lavar as churrasqueiras, os fornos de pizza, pôr e tirar as mesas para os amigos, toma muito tempo e dá um tremendo trabalho.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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