Ex-governador Jaime Lerner era um apaixonado por cidades e pessoas

Arquiteto e urbanista morreu aos 83 anos; ele criou o Sistema Integrado de Transporte Coletivo de Curitiba e foi referência mundial em planejamento urbano

  • Por Helena Degreas
  • 28/05/2021 09h00
Banco de Imagens/Estadão Conteúdo Jaime Lerner falando ao microfone. Homem branco de cabelos brancos e camiseta preta Em 2010, Lerner foi considerado pela revista americana Time como um dos pensadores mais influentes do mundo e recebeu a Medalha de Urbanismo da L’Académie D’Architecture, na França

Como estudante de arquitetura e urbanismo, entendi já nas primeiras semanas da faculdade que aprendemos o nosso ofício não apenas por meio dos estudos, nas salas de aula e nos ateliês, mas também vasculhando as bibliotecas, conversando com os professores pelas rampas da FAUUSP — que à época me pareciam curtas frente à tantas inquietações –, perdendo-se entre os inúmeros laboratórios de pesquisas nos subsolos do prédio, além de uma das formas mais ricas possíveis: do lado de fora da universidade, na cidade e na vida pública. Em meio a um trabalho da disciplina de planejamento urbano, após semanas de debates acalorados entre os membros da equipe, decidimos ir à Curitiba, no Paraná, conhecer mais de perto os resultados de uma cidade que havia tido um arquiteto e urbanista como prefeito algumas vezes e que já era citada nos seminários estudantis e nos corredores da faculdade como “cidade-modelo”. O prefeito? Jaime Lerner.

Ávidos por aprender e descobrir a realidade fora dos limites universitários, juntamos uns trocados, compramos passagens de ônibus, combinamos de pernoitar numa república e lá fomos nós. Por dois dias, tínhamos por missão conhecer, fotografar, relatar e elaborar um diagnóstico dos espaços físicos e do uso e apropriações pela população desses locais por ele concebidos, para servir de inspiração para nossa proposta de trabalho. Fizemos um passeio pela 15 de Novembro, conhecida como Rua das Flores, repleta de gente conversando, indo de um lado para o outro, pessoas sentadas em banquinhos observando o movimento, outros tomando café em mesinhas colocadas do lado de fora de confeitarias… Também vimos o Bus Rapid Transit (BRT), que levava o conceito de metrô – muito caro, segundo Lerner, para a superfície das ruas –, além do sistema de praças e parques urbanos concebidos para melhorar a qualidade ambiental da cidade, atendendo a demanda da população por lazer. Tudo isso nos impactou profundamente. Ao voltar para São Paulo, entendemos que planejamento urbano é um processo que envolve vários atores sociais, mas que depende de bons gestores públicos, conscientes de seu papel social e que, como Jaime Lerner, gostem de pessoas e entendam o funcionamento complexo das organizações urbanas.

Nos saímos bem no trabalho mas, o mais importante, foi a marca deixada em nós, jovens urbanistas, que sonhavam com cidades planejadas para o bem-estar das pessoas. O que se apresentou à época foi uma cidade generosa e acolhedora com seus cidadãos e visitantes. Sua visão inovadora mostrava um profissional alinhado e comprometido com as discussões internacionais sobre urbanismo, e que vinham sendo adotadas por prefeitos e urbanistas espalhados em todo o mundo desde os anos de 1960. As diretrizes adotadas em seus planos e programas apontavam para a necessidade de adoção de políticas públicas de incentivo ao transporte coletivo e a necessidade de gerar bons espaços direcionados às pessoas por meio da reconfiguração das cidades fragmentadas pelos ideais rodoviaristas.

Em “Acupuntura Urbana”, o arquiteto mostrou-se apaixonado por cidades e pessoas, trazendo por meio de um texto de leitura fácil (eu recomento), suas reflexões sobre boas práticas vivenciadas ao longo das múltiplas viagens que realizou ao longo da vida. As discussões sobre mobilidade urbana tinham foco na caminhabilidade e uso de bicicletas, integração de modais, ruas e espaços públicos fechados para o uso de automóveis e aberto para a recreação da população, além de prioridade para o transporte coletivo por meio de faixas exclusivas. Também era evidente a preocupação com questões ambientais e de sustentabilidade que vem ocorrendo nesta última década, e já haviam sido pensadas e postas em prática há mais de 30 anos por Jaime Lerner.

Balneário Camboriú, em Santa Catarina, o Jardim Botânico, a Ópera de Arame, a Orla do Guaíba, no Rio Grande do Sul, além de designs de mobiliários e inúmeros planos diretores em todo o território brasileiro marcaram uma vida profissional exitosa, o que lhe conferiu prêmios e títulos internacionais, destacando-se o Prêmio Máximo das Nações Unidas para o Meio Ambiente (1990) e o Unicef Criança e Paz (1996). Em 2010, Lerner foi considerado pela revista americana Time como um dos pensadores mais influentes do mundo e recebeu a Medalha de Urbanismo da L’Académie D’Architecture, na França. Numa época em que políticos não agem como homens públicos e não tem vontade de realizar as mudanças necessárias para a construção de cidades mais humanas e socialmente justas, o arquiteto Jaime Lerner será lembrado em cada uma de suas obras e seus textos. Mais do que isso, suas ideias continuarão sendo fonte de inspiração para outros jovens urbanistas. Obrigada Jaime Lerner.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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