Lança e caco de vidro em espaço público: um lembrete de que os cidadãos não são bem-vindos nas cidades

A omissão de prefeituras na gestão dos excessos praticados, com o intuito de prejudicar a presença de grupos indesejáveis, configura-se como apoio institucional e incondicional à barbárie urbana

  • Por Helena Degreas
  • 18/01/2022 09h00 - Atualizado em 18/01/2022 11h50
Reprodução/Twitter/@pejulio Padre Julio Lancellotti posa com marreta em um espaço público em, que pedras foram colocadas para atrapalhar os moradores de rua O padre Julio Lancellotti quebrou com uma marreta os blocos de paralelepípedos instalados na parte inferior de um viaduto

Em fevereiro de 2021, o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, quebrou a marretadas os blocos de paralelepípedos instalados pela gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB) na parte inferior de viadutos na zona leste da capital paulista. Apesar da exoneração do funcionário público que adotou a desastrosa ação higienista, exemplos como esse alimentaram as redes sociais com imagens semelhantes em todo o território nacional. O fenômeno higienista materializado por meio da incorporação de técnicas e materiais hostis à permanência da população nos espaços públicos é visível em qualquer cidade do mundo, expondo os níveis de civilidade e sociabilidade de governos e grupos sociais. Queria eu ter a coragem de agir como ele, aqui mesmo, na rua onde moro, sem correr o risco de ser agredida por vizinhos hostis que, aparentemente, são pessoas que odeiam pessoas. Para proteger-se do desconhecido, incorporam em muretas, degraus, frente de lojas cobertas, jardins e qualquer canto que eventualmente possa vir a ser utilizado como local de descanso por um ser humano, objetos pontiagudos, lanças, plantas venenosas ou espinhosas. Quem nunca vivenciou situação semelhante ao meu relato?

É nos espaços livres destinados ao público que a vida urbana acontece. O adensamento das cidades é uma tendência mundial que obriga profissionais que lidam com formas para atender aos comportamentos e necessidades cotidianas dos diversos arranjos sociais para deslocamentos, permanências, convivências ou apenas coexistências entre pessoas, a buscar soluções para a constituição de um urbanismo acolhedor que a modernidade rodoviarista roubou dos cidadãos. Em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”, o presidente do IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo), Fernando Túlio, afirma que, em vez da utilização de técnicas construtivas hostis, a solução é seguir o caminho inverso adotando o princípio da democratização do uso do espaço público urbano. Acrescenta que prefeituras deveriam organizar manuais técnicos que indiquem que a população é bem-vinda. Transformar as ruas em espaços confortáveis é um dos maiores desafios para profissionais que planejam e projetam as cidades contemporâneas. A falta de civilidade no trato do espaço público destinado aos cidadãos leva à necessária dissociação de dois aspectos que parecem emaranhados no dia a dia: a hostilidade planejada, projetada e implantada por prefeituras e demais técnicos públicos daquela que, praticada diariamente por cidadãos e empresas, expõe a intolerância por meio de lanças, pedras, cacos de vidro e outros objetos que impedem a coexistência e convivência de grupos sociais indesejados num mesmo lugar. Indesejado é qualquer um que não faça parte do grupo hostil.

As consequências da desastrosa gestão econômica ao longo da pandemia de Covid-19 sobre a vida dos trabalhadores brasileiros pelo Nefasto – aquele ser que habita o castelo do Planalto e governa para as sombras –, retiraram da mesa de 55% dos brasileiros o direito a um prato de comida, o emprego e, por fim, sem condições para pagar pela locação, o lar, jogando milhões de pessoas literalmente nas ruas. Neste contexto, é odiosa, abjeta, cruel e vil a ação do agente público que, a pretexto de manter a limpeza ou realizar “pequenos reparos”, expulsa dos espaços públicos famílias inteiras que encontram nas ruas o local de abrigo para seus lares. Encontram-se nesta condição alheias à suas vontades. Aguardam por soluções dos governos. Têm pressa. Quando cobrados publicamente por suas ações, prefeituras desconversam e apresentar resultados pífios, ineficazes e de caráter temporário, cujos dados, construídos em levantamentos antigos, expõem-se na paisagem das cidades em canteiros centrais, calçadas e sob viadutos para qualquer um ver. Recentemente, comentei sobre a aquisição de mobiliário temporário para o Viaduto Presidente João Goulart (Minhocão), aqui em São Paulo, para atender aos finais de semana um público que busca recreação e lazer quando, sob o mesmo local, moram centenas de pessoas em situações degradantes. São as prioridades do atual prefeito: circo e diversão, porque pão, mesmo, quem distribui é o padre Julio Lancellotti e milhares de pessoas e empresas anônimos cuja empatia e amor transbordam em suas ações.

Outras intervenções hostis são criadas por grupos formados por indivíduos que odeiam coexistir e conviver civilizada e democraticamente em ambiente urbano “não exclusivo” com indivíduos que não comungam das mesmas ideias e comportamentos. Encerrados em seus habitats físicos e morais, ampliam seus domínios espaciais, golpeando sistematicamente com suas ações a esfera de vida pública ao impor, às ruas, manuais próprios de civilidade e comportamento urbano por meio de suas referências peculiares, para dizer o mínimo, de convivência urbana. As lanças são apenas lembretes de que os cidadãos não são bem-vindos na rua, no bairro, na cidade. A omissão da prefeitura na gestão dos excessos praticados, com o intuito de prejudicar a presença de grupos indesejáveis, configura-se como apoio institucional e incondicional à barbárie urbana: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Quando grupos sociais e empresas promovem a expulsão dos cidadãos dos espaços públicos utilizando técnicas de construção hostil, cabe aos gestores elaborar políticas para a gestão do problema: dotar de recursos materiais, técnicos e financeiros a regulação do uso democrático dos espaços públicos, definindo os departamentos responsáveis pela fiscalização e canais interativos com a população que, no caso de eventuais excessos, pode denunciar a situação. Mas, para tanto, faz-se necessária a vontade política. E isso, nós, cidadãos, sabemos que não há.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.