O direito à memória cultural: por que devemos nos preocupar com edifícios antigos

Sobrados, igrejas e até fábricas expõem ao mundo a identidade de um lugar; sem a preservação da história, perdemos nossa identidade cultural e muito de nós mesmos

  • Por Helena Degreas
  • 04/05/2021 09h00 - Atualizado em 04/05/2021 09h14
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Helena Degreas/Jovem Pan Sobrado antigo construído em uma esquina de São Paulo e aparentemente abandonado, com pichações na fachada e árvores que cortam as janelas Sobrado abandonado na Vila Maria Zélia, zona norte de São Paulo

Outro dia vi no Twitter de um colega algumas imagens das fachadas de um edifício construído no início do século XX e cujo valor histórico, apesar de evidente, não impediu a descaracterização total, transformando-o num prédio grotesco, que mais parecia uma caixa de sapatos esburacada. As fachadas originais, que eram repletas de ornamentos diversos, com janelões de madeira altos e esguios, foram substituídas por uma cerâmica de piso medonha. Alguns leitores devem estar se perguntando por que devemos nos preocupar com edifícios antigos? Preservar a história para quê? Um sobrado, uma igreja, uma fábrica, uma praça, um bairro inteiro carregam na imagem e expõem na paisagem a história de pessoas que viveram nestes lugares. Suas histórias estão todas lá, evidenciando-se em cada detalhe, como que lembrando aos residentes atuais a forma como moravam, trabalhavam, estudavam e viviam nossos antecessores, quais eram suas rotinas cotidianas e comportamentos sociais. Nos fazem lembrar que muito do que somos hoje devemos a todos eles. 

A isso tudo, chamamos de memória. Cada elemento desses é uma espécie de elo que nos conecta ao passado, nos lembra quem somos e de onde viemos. Cada espaço construído materializa a história de inúmeras gerações e traz, justamente por isso, a nossa história. Sem a preservação da história material (seus artefatos) e imaterial (suas histórias e valores), perdemos nossa identidade cultural e muito de nós mesmos. Mas por que então a descaracterização e demolição de bens arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos brasileiros é tão frequente?  Qualquer viajante ama postar fotos em frente a catedrais, prédios antigos e praças de países cuja população e governos têm políticas e incentivos para a conservação e preservação de arquiteturas e lugares construídos ao longo de todo um processo de formação histórica. Meus antepassados gregos, apesar das dificuldades econômicas que assolam o país há décadas, preservam sua história por meio dos seus monumentos. Grande parte da economia do país vem do turismo, que expõe suas tradições e valores por meio da arquitetura, dos seus museus  — que guardam objetos antigos  —, de vilarejos construídos a centenas de anos, de suas músicas e danças alegres, comidas, azeites, queijos e vinhos. Eles têm orgulho de sua história e do que são. A história moldou-os como sociedade e como indivíduos.

Embora ainda existam dificuldades diversas para tratar a preservação de bens históricos e culturais, é possível tecer algumas considerações sobre o assunto aqui em São Paulo. Em 2006, o prefeito da cidade promulgou a Lei nº 14.223 e o Decreto nº 47.950, conhecidos como Lei da Cidade Limpa. A partir dela, muitas fachadas, antes encobertas por painéis e placas promocionais de todos os tipos, foram retiradas, revelando a beleza de vários edifícios antigos e que ninguém conhecia. Se para os proprietários foi difícil trabalhar com anúncios menores e algumas adaptações, a cidade e a população ganharam identidade, pois ruas inteiras, construídas na mesma época e com fachadas e volumes semelhantes, ficaram à vista, apresentando a todos os cidadãos a história do lugar. Associações que tratam de comunicação, e que têm por hábito envelopar prédios e fachadas sistematicamente, tentam alterar a lei reclamando que, sem as placas, ninguém vê lojas. Como pode esse argumento? A população precisa ficar sempre de olho nestas investidas.

Desenvolvimento urbano e preservação histórica andam juntos e dependem da vontade da população e de sua atuação frente ao poder público para acontecer. A definição dos tipos de intervenção que o patrimônio cultural pode receber ocorrem nos três níveis de poder: na esfera municipal (em São Paulo, por meio do Conpresp), estadual (Condephaat) ou federal (Iphan). Um dos instrumentos de preservação é o tombamento, temido pelos proprietários de imóveis com valor histórico. O temor tem sua razão de ser: os processos para preservação são longos, arrastando-se em alguns casos por décadas, assemelhando-se aos processos enviados para o Judiciário brasileiro; ocorre também a falta de diálogo e interação entre as três instâncias, situação essa que gera mais atrasos. Já pensou ter que esperar dez anos ou mais pela apreciação e finalização de um processo sem poder fazer nada com o seu imóvel? Mais um fator prejudicial que se pode acrescentar é a falta de participação do público envolvido nas decisões e a priorização dos elementos técnicos e estéticos, que fazem com que o bem tombado deixe de ser um elemento participativo e articulado na cidade, perdendo seu simbolismo e caráter patrimonial urbano. Resoluções tomadas exclusivamente por técnicos tendem a se dissociar da realidade do cidadão.

Outra questão importante sobre a preservação de bens culturais trata das políticas de incentivos aos proprietários de imóveis que reconhecidamente têm valor cultural. Afinal, se a edificação é tombada porque o interesse é público, a prefeitura, o Estado e a União devem oferecer contrapartidas, pois interessa a eles preservar a cultura e história do país. Em São Paulo, com a aprovação do PDE (Plano Diretor Estratégico) em 2014, a conservação do imóvel tombado passa a ser uma condição para o uso do TDC (Transferência do Direito de Construir), um dos instrumentos que podem ser utilizados como ferramenta para a obtenção de recursos para as obras de reabilitação, restauro, retrofit, requalificação e demais projetos, a depender do nível de preservação do bem. Dito de outra forma, todo o imóvel possui um potencial construtivo associados às regulações urbanísticas de cada cidade. Um imóvel, quando é tombado, não consegue usufruir de todo o potencial construtivo previsto nas leis em função das restrições impostas pelo tombamento. Com a TDC, os proprietários podem vender o potencial construtivo não utilizado para outros imóveis na cidade e investir os recursos exclusivamente na recuperação do seu, pois trata-se de dinheiro destinado apenas para esta finalidade. Com os recursos, é possível contratar mão de obra técnica qualificada e materiais adequados para restaurar o bem. 

Por fim, o instrumento de tombamento deveria ser apenas um dos elementos que compõem as políticas de preservação cultural, mas nem sempre é o que ocorre. Ao passar pelo processo de restauro, as obras precisam atender às demais disposições legais que garantem a segurança e a habitabilidade do edifício. Um exemplo é o AVCB (Auto de Vistoria de Corpo de Bombeiros), um documento que certifica as condições de segurança contra incêndio previstas numa legislação cuja aplicação direta nem sempre é possível para imóveis construídos em outros séculos… Outro exemplo trata das necessárias questões de acessibilidade a todas as áreas dos edifícios. A despeito das normas e legislações existentes, que devem ser aplicadas, é necessário construir soluções adequadas para cada edifício de maneira particular pois a aplicação direta da lei pode levar o proprietário a incorrer em crime por descaracterização do imóvel. Cabe ao poder público resolver esse conjunto de questões de forma a colaborar com o acesso a informações sobre os incentivos existentes, bem como colaborar com programas que unifiquem ações e agilizem processos e rotinas administrativas em nome da preservação do patrimônio cultural brasileiro.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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