Palácio Gustavo Capanema: como se atrevem a colocar em leilão o que nos faz brasileiros?

Única explicação que encontro para o silêncio das autoridades sobre a inclusão do edifício num feirão de imóveis fundamenta-se na ignorância frente à rica produção cultural do nosso país

  • Por Helena Degreas
  • 24/08/2021 10h00 - Atualizado em 24/08/2021 10h38
Marcos Arcoverde/Banco de Imagens/Estadão Conteúdo edifício gustavo capanema Conhecido como Palácio Gustavo Capanema em referência ao ministro da Educação da época, o bem patrimonial federal é constituído de um prédio de 16 pavimentos

Dentre os mais de dois mil imóveis à venda em um feirão promovido pelo governo federal para investidores interessados em adquirir edifícios cujo uso e manutenção ineficientes oneram os cofres públicos, encontra-se o Edifício Gustavo Capanema, localizado no centro da capital carioca. Para o ministro Paulo Guedes, o valor de mercado do referido bem ajudará a fazer o caixa do governo. É só mais um imóvel. Nenhuma menção ao seu valor cultural. O silêncio profundo do ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiro, e do Secretário Especial da Cultura, Mario Frias, frente ao despautério da proposta expressa na intenção do economista é, no mínimo, desconcertante e inadmissível para dois gestores públicos que deveriam zelar pelo patrimônio educacional e cultural brasileiro. No caso do ministro Guedes, enquanto escrevo a coluna, soube que manifestou opinião contrária à venda aos seus amigos próximos. Aguardo pela manifestação oficial. De qualquer forma, sua vontade atual não justifica a inclusão de bem tombado num feirão de imóveis.

Conhecido como Palácio Gustavo Capanema em referência ao ministro da Educação da época, o “bem patrimonial” federal colocado à leilão pelo atual ministro da Economia é constituído de um prédio de 16 pavimentos com jardins de Roberto Burle Marx que perfazem uma área de mais de 27 mil metros quadrados. Finalizado em 1946 e tombado pelo Iphan em 1948 como marco da arquitetura moderna brasileira, o prédio foi inaugurado pelo presidente Getúlio Vargas e construído para sediar o antigo Ministério de Educação e Saúde. Visto pelo olhar de Guedes, a venda será um sucesso graças à privilegiada localização em área central, dotada de infraestruturas e equipamentos públicos. Está em processo de restauro, mas os novos proprietários não terão dificuldades em “modernizá-lo”, atendendo a estética cafona dos ocupantes do Palácio do Planalto: coloque-se uma torre Eiffel aqui e uma Estátua da Liberdade ali e pronto! Vai ficar lindo! O vazio que permite ao público o passeio pelo generoso espaço livre poderá ser habilmente fechado por qualquer empresa particular de vigilância patrimonial que, com seus agentes uniformizados, carros vistosos estacionados com suas logomarcas sobre os gramados de Burle Marx e expertise peculiar, impedirá que eventuais cidadãos/meliantes flanem pelo local em seus momentos de ócio. Segurança máxima garantida: ninguém entra ou passa por lá sem o aval dos vigias do crachá. Perde-se chão urbano, perde-se civilidade.

De que adianta ressaltar nesta coluna que o projeto foi elaborado por profissionais internacionalmente respeitados no mundo? De que adianta explicar que arquitetos consagrados como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Carlos Leão e Ernany de Vasconcelos, além de Roberto Burle Marx, foram responsáveis pelo projeto concebido a partir de estudos feitos por Le Corbusier que aqui esteve em 1937 como consultor? Temo que os atuais gestores públicos conheçam melhor as atrações do mundo de Disney do que aquilo que ocorre aqui por nossas terras. Tenho quase certeza de que devem ter compartilhado inúmeras selfies sorridentes em frente a monumentos e arquiteturas públicas de países estrangeiros cujo contexto desconhecem, sem saber ao certo o que estavam fotografando para, posteriormente, ostentar em redes sociais os recursos que têm para viajar e o valor dado a alguns aspectos da cultura estrangeira. Caminho oposto foi realizado pelo então Ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema que, ao destacar a relevância de nossas tradições e produção cultural, colaborou na constituição de nossa identidade, aquilo que nos faz brasileiros. Não havia redes sociais e nem curtidas à época: entrou para a história pela relevância de sua trajetória pública.

Como ministro da Educação e Saúde Pública do governo Getúlio Vargas, Gustavo Capanema foi responsável pela estruturação dos valores culturais que conhecemos, compartilhamos e pelos quais somos reconhecidos nacional e internacionalmente. Eduardo Augusto Costa (professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) destaca em seu artigo “Vende-se a alma do Brasil” (publicado pelo jornal da USP) que, se hoje aspectos da história são tratados como fundamentos constitutivos da nossa cultura, isto se deve mais especificamente ao trabalho do então ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema. Suas ações contribuíram para revelar a importância de Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira, e a excepcionalidade da cidade que é patrimônio histórico mundial da Unesco, ou ainda, o valor do escultor mestiço Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho que, mesmo impactado por sérios problemas de saúde, é considerado o maior representante das artes e da arquitetura do barroco mineiro. Os valores culturais fundamentam e colaboram na construção e constituição das identidades nacionais, levando o povo a identificar-se com o conjunto material e imaterial que abrange as artes, os comportamentos, modos de vida, alimentação, crenças, gostos, tradições, um sistema de valores que compartilhamos entre nós.

Em seu delicado texto publicado na Folha intitulado “O Palácio Capanema é dos brasileiros”, a jornalista e escritora Cristina Serra transcreve um trecho de uma carta do poeta Vinícius de Moraes ao amigo Rubem Braga que, como correspondente de guerra, estava na Itália. Nele, o poeta escreve sobre o perfume dos jasmineiros que florescem em Brasília e, mais adiante, destaca o “azul da tarde carioca, recortado entre o Ministério da Educação e a ABI [Associação Brasileira de Imprensa]. Não creio que haja igual mesmo em Capri.” A jornalista acrescenta que o poeta referia-se à sede do Ministério da Educação, o Palácio Gustavo Capanema que foi, e ainda é, um “um manifesto de modernidade ética e estética num país arcaico”, e cuja construção sintetiza o talento brasileiro materializando na obra, o projeto de futuro de um país. Mais adiante, Cristina Serra apresenta o trecho de um registro de Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, em que descreve as qualidades arquitetônicas do edifício destacando a luz intensa, natural, que substitui as lâmpadas acesas durante o dia e a vista que tem a partir do décimo andar para a cidade e para a estátua de mulher nua de Celso Antônio, cujo ventre retém as gotas de chuva em que os passarinhos vem beber, destacando a imprevisibilidade utilitária de uma obra de arte. Recomendo a leitura. Um sopro de ar fresco frente à realidade medíocre que vem de Brasília e insiste em nos sufocar.

O silêncio do ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, que recentemente afirmou que o diploma de nível superior não vale nada, e do Secretário Especial da Cultura, Mario Frias, que foi à Veneza sem saber quem era a arquiteta Lina Bo Bardi, são providenciais. A única explicação que encontro fundamenta-se na ignorância frente à rica produção cultural brasileira. Acredito que, tanto um quanto o outro, tenham entrado em algum momento de suas vidas no Palácio Capanema, mas desconhecendo seu papel como marco da arquitetura moderna. Provavelmente, não deram a devida atenção à leitura da biografia do ex-ministro da Educação Gustavo Capanema, cujo nome e ações permanecerão eternizados no Palacete que Guedes pôs à venda. Espero, pelo bem do nosso país, que suas ações e políticas públicas na construção da identidade nacional lhes permitam receber homenagens semelhantes no futuro. Somos brasileiros e, como tal, queremos respeito em relação ao que nos dá identidade: nossa produção cultural.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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