Pior é impossível: cidades disfuncionais têm impactos negativos sobre a qualidade de vida de quem tem TOC

Projetistas, políticos e legisladores ainda não perceberam que milhões têm suas vidas impactadas negativamente pela ausência do Estado em ambientes urbanos e espaços livres de convivência pública

  • Por Helena Degreas
  • 20/12/2022 09h00 - Atualizado em 20/12/2022 13h56
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Arquivo Pessoal/Helena Degreas piso hidráulico, Ladrilar. Andar sob superfícies com desenhos irregulares como este piso hidráulico pode ser sufocante para quem tem TOC

O filme “Melhor é Impossível” (1997) tem como protagonista um romancista obsessivo-compulsivo estrelado por Jack Nicholson que, relutante em buscar auxílio profissional para amenizar os impactos causados pela doença em seus comportamentos, sofre com as consequências resultantes das interações sociais e ambientais com tudo e todos a sua volta. Caracterizado como metódico, rabugento e extremamente reservado, pode-se dizer que suas ações são atípicas ou inesperadas aos comportamentos socialmente estabelecidos e aceitos por aqueles que, culturalmente moldados, convivem em ambientes urbanos, causando temor e estranhamento às pessoas. 

Há uma cena em que o personagem Melvin caminha por uma calçada “paginada” por ladrilhos simétricos, que, ao impedi-lo de se locomover tranquilamente em linha reta, despertaram uma “situação de gatilho”, desestabilizando-o mentalmente. Como resposta à simetria e fissuras no piso, o protagonista só teve a sensação de angústia aliviada a partir do momento em que escolheu uma cor e, por ela, aos saltos, atravessou o local, chegando aonde queria. Obviamente chamou a atenção das pessoas à volta, que, achando graça, riram da situação por ele protagonizada. Germofóbico, não consegue compartilhar utensílios, tocar numa maçaneta ou abrir uma torneira. Fosse hoje, Melvin teria à disposição sensores de presença e comandos de voz que dispensam o toque físico, colaborando em muito a convivência com as outras pessoas e o estresse. Mas, e se fosse no Brasil? Prefeitos e vereadores teriam a vontade política de mudar a situação das cidades, acolhendo-o? Incluindo-o? Atendendo suas necessidades?

Como podemos evitar que 3% da população mundial — de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) — passe por este desgaste físico e mental causado pelos transtornos oriundos de uma calçada inadequada ou de ambientes cuja convivência gera compartilhamento de instrumentos e espaços? O Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) indica uma doença psiquiátrica tratável, caracterizada como um transtorno de ansiedade. Manifesta-se por pensamentos e comportamentos indesejados que não podem ser controlados. Embora algumas pessoas utilizem a expressão TOC como brincadeira, para descrever algumas ações repetitivas (como verificar sistematicamente curtidas ou mensagens nas redes sociais), os sintomas verdadeiros interferem drasticamente na qualidade de vida da pessoa que o tem, levando, em alguns casos, à incapacitação funcional e dificultando ou mesmo impedindo a execução de tarefas relacionadas à vida diária em seu lar, às atividades ocupacionais e de trabalho, além das relações comunitárias e sociais. Quem tem TOC não consegue controlar seus pensamentos ou comportamentos, mesmo quando reconhece que são excessivos, prejudiciais e incontroláveis. 

No Brasil, as tecnologias existentes e as práticas construtivas ainda não são utilizadas para colaborar com a qualidade de vida urbana das pessoas com TOC. É um assunto que ainda não entrou na pauta de discussões da agenda urbana nacional ou local. Isto, sim, é um problemão: projetistas, políticos e legisladores ainda não perceberam que milhões de cidadãos têm suas vidas impactadas negativamente pela ausência do Estado na abordagem técnica aplicada à questão sobre os ambientes urbanos e nos espaços livres de convivência pública. É possível afirmar que, para aqueles que têm TOC, as cidades são disfuncionais tanto nos aspectos macro — e que atingem a todos —, como a falta de infraestrutura nas áreas de saneamento e habitação, quanto naqueles que interferem no nosso cotidiano: a capacidade de se locomover a pé pelas calçadas. Em muitos casos, nem mesmo a sua existência garante a qualidade ou a possibilidade do andar: mais atrapalham e impedem do que facilitam a livre circulação de qualquer cidadão.

“Droga de calçada horrível, tenho que sair cada vez mais cedo de casa para conseguir chegar no trabalho no horário. O que custa para a prefeitura arrumar o piso? Tenho que ziguezaguear enquanto ando para encontrar alguma unidade de cor, de simetria para andar. Muitas vezes uso a pista de asfalto e corro o risco de morrer atropelado.” Este foi um dos depoimentos extraídos da pesquisa feita pelo graduando em arquitetura e urbanismo Gabriel Lopes de Campos para seu trabalho de conclusão de curso “Acessibilidade para pessoas com Transtorno Obsessivo Compulsivo”. Leis, decretos, inserção de jabutis associados a projetos e ações públicas adotadas de maneira independente ao planejamento das cidades causam um verdadeiro caos legal, normativo e urbanístico quando materializadas nas cidades. As calçadas citadas pelo entrevistado resultam desta situação. De que adiantam normas e diretrizes para boas práticas de projeto direcionadas ao cidadão se as calçadas sequer requerem projeto assinado por arquiteto ou engenheiro para sua execução? “Qualquer um faz o que mais gosta esteticamente guiado, sobretudo, pelo seu bolso”, acrescenta Campos. “Não acredito que seja de má-fé… Legislação urbana e normas técnicas utilizam linguagens acessíveis apenas para profissionais da área e não para a pessoa comum. Desempenamento mecânico ou módulo de referência: quem sabe o significado disso dia a dia?” E completa: “De que adianta refazer a calçada se vem uma concessionária e destrói tudo?”.

Acrescento que prefeituras também não fazem a lição de casa, que é a de manter, no mínimo, uma zeladoria urbana decente, eficaz. Para que serve uma calçada? Serve para caminhar sobre ela, serve para que um cidadão possa ir de um lado para o outro de maneira segura e eficaz. Para que isso ocorra, o piso tem que ser uniforme, sem irregularidades, sejam de cor, de textura, de desnível e livres de empecilhos, sejam eles postes de luz, entradas e saídas de garagens, mesas e cadeias, pontos de ônibus etc. Solução tem: que se implante, pelo poder público, uma faixa linear acessível e que atenda a todos. Como é que os vizinhos de rua farão isso? Por melhor que seja a norma e a lei, não tem como implantar. Se já é difícil cobrar da prefeitura que se organize para fazer o serviço de zeladoria urbana, como garantir que dezenas de proprietários se reúnam para construir calçadas acessíveis para quem tem TOC? Colocar a responsabilidade de manutenção das calçadas no proprietário do lote é uma atitude descabida e impraticável, distante anos-luz das práticas urbanísticas de outros países. Lembremos que, em áreas centrais, são dezenas de permissionárias, concessionárias, instituições públicas, condomínios e até pessoas que interferem diretamente sobre este espaço, abrindo e fechando buracos ou mesmo implantando construções hostis feitas com cacos de vidro, arbustos espinhosos ou lanças. Precisou criar até lei para evitar comportamentos hostis em espaços públicos.

Passou da hora das prefeituras assumirem que a responsabilidade para com a qualidade de planejamento, projeto, construção e manutenção do espaço público destinado aos cidadãos é responsabilidade das prefeituras e dos demais entes federativos. A solução possível adotada por cidades estrangeiras é a de criação de uma autoridade pública (uma secretaria ou outra figura institucional) cujo poder de inibir, coibir e propor se sobreponha ao caos legal e institucional que historicamente tomou conta dos espaços livres urbanos. Não faltam leis. Falta organização e vontade política de dar um basta à falta de respeito ao cidadão. Cidades disfuncionais como São Paulo geram deseconomias, perdas materiais e colocam em risco a vida da população.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram@helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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