Quilombolas, indígenas e demais comunidades tradicionais contribuem para a preservação ambiental
Planejamento das áreas de proteção desconsidera saberes, formas de vida e aspectos culturais dos habitantes, excluindo ou dificultando a demarcação das terras e a titulação das comunidades
A qualidade de vida do cidadão brasileiro e de todos aqueles que habitam o planeta Terra depende da preservação dos ecossistemas brasileiros. Nas últimas semanas, os noticiários vêm alertando a população para as consequências provocadas pela escassez do nível de chuvas que, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), é a pior em 91 anos e afetará a geração de energia em todo o país. Haverá falta de água e de energia? Sim, juntamente com o aumento das tarifas para os consumidores – eu, você, todos nós. Não se trata apenas da seca, e sim da vazão dos rios que, com o aquecimento anormal da superfície do Oceano Pacífico Equatorial (Instituto Nacional de Meteorologia) provocado pelos fortes impactos do El Niño (menos chuvas e aumento da temperatura) viram seu fluxo de água minguar nos últimos oito anos.
O insumo básico das usinas hidrelétricas para as fontes de geração de energia é a água: ou seja, se não houver chuva suficiente, haverá disputa entre o consumo de água e produção de energia. Faz-se necessário portanto, boas práticas de manejo e conservação dos ecossistemas, reduzindo os desmatamentos e sua devastação, com o objetivo de limitar o aumento global da temperatura não apenas para o cumprimento do Acordo de Paris, do qual o Brasil é signatário, mas também para evitar um verdadeiro cataclismo, como prevê o Fórum Econômico Mundial. Alguns dos efeitos provenientes das mudanças climáticas nós, brasileiros, vivenciaremos por meio de um dilema: os governos priorizarão o consumo de água ou de energia elétrica? A emergência da questão ambiental neste século aponta para a necessidade de repensar os modelos de proteção da natureza adotados no Brasil, incluindo critérios de preservação e conservação que associem os sistemas culturais, econômicos e sociais nas políticas públicas ambientais.
“Conservadora” no que tange à inclusão das populações tradicionais como os ribeirinhos, indígenas, caiçaras e quilombolas, o planejamento das áreas de proteção desconsidera saberes, formas de vida e aspectos culturais dos habitantes, excluindo ou dificultando a demarcação das terras e a titulação da comunidade por meio do seu autorreconhecimento. Os sistemas de manejo dos recursos naturais como águas, florestas e demais elementos dos ecossistemas brasileiros realizados nos povoamentos destas comunidades tradicionais contribuem sobremaneira para a conservação da natureza, apresentando impactos positivos em áreas degradadas. As atividades produtivas como a agricultura itinerante e o adensamento de espécies úteis às terras devastadas apresentam capacidade de melhorar o ambiente pelo recobrimento do solo, aumentando a possibilidade de regeneração natural. Não é à toa que grande parte das áreas que ainda mantém florestas e demais ecossistemas não degradados também é onde encontram-se os territórios quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e indígenas. As comunidades aplicam boas práticas de manejo do solo contribuindo naturalmente para a manutenção dos ecossistemas e garantindo sua estabilidade econômica, social e cultural, impedindo a expansão provocada por atividades que degradam o ambiente, situação essa que gera conflitos entre fazendeiros e empresas.
A titularidade das terras brasileiras não é fruto de direito divino e sim do processo histórico de transferência do domínio dos bens públicos a particulares. No início, a titularidade das terras brasileiras pertencia à Coroa Portuguesa que, por meio da concessão para sesmeiros (amigos do rei e indicados), permitia a utilização para fins de exploração. Anos mais tarde, com a as mudanças sociais e econômicas, o imperador Dom Pedro II viu-se obrigado a regularizar uma questão sensível que gerava insegurança jurídica: ricos e pobres, eram todos posseiros. Não havia documentação legal que garantisse a titularidade. Por fim, promulgou a Lei n° 601/1850, responsável pela legitimação da titularidade àqueles que já possuíam terras públicas como suas e que tivessem cumprido os requisitos previstos abolindo o sistema de posse. Dentre os requisitos solicitados, havia o pagamento de altas taxas que inviabilizaria a regularização da titularidade para a maioria dos posseiros de pequenas propriedades, como de todas as demais populações que ocupavam o território. À época, o país optou pelo latifúndio como forma de ocupação das zonas rurais e pela exclusão das pequenas propriedades. Hoje, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2 mil hectares (20 km²): somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira.
De um lado, políticas públicas que excluem de suas análises e diagnósticos os aspectos sociais, culturais e econômicos das populações, como se os povos que ocupam os biomas não existissem. De outro, os constantes conflitos territoriais acirrados no contexto atual pelas políticas predatórias praticadas na gestão do presidente Jair Bolsonaro e do “passador de boiadas Ricardo Salles”. O aumento dos conflitos entre garimpeiros, mineradores e demais invasores ampliou-se de tal forma que os povos indígenas denunciaram o governo brasileiro à ONU por paralisação na demarcação de terras e descaso frente à pandemia. É natural e previsível que haja resistência por parte das populações que vivem em suas terras há séculos. Diante dos protestos em frente ao Congresso, os manifestantes desarmados foram recebidos pela polícia com gás lacrimogêneo.
As questões relacionadas às propriedades de terras são polêmicas, em especial para aquelas autoridades públicas que desprezam os direitos de uso e posse de territórios ancestrais de comunidades tradicionais. Negam, por sua vez, os traços miscigenados das matrizes africanas, indígenas e portuguesas que se encontram presentes no nosso dia a dia, em nossa linguagem, nos hábitos alimentares, nas festas típicas, em nossa religião e em nossas técnicas construtivas e de produção. O arquiteto Luís Felipe Xavier (professor universitário e pesquisador em planejamento urbano e regional) publicou recentemente o artigo “Nosso Futuro na ancestralidade!” no qual retrata a situação vulnerável dos povos originários no Brasil, gerada sobretudo pela insegurança jurídica que se impõe às territorialidades. Refere-se às comunidades quilombolas, fruto da diáspora de matriz africana. Afirma que os povoamentos devem ser entendidos como espaços riquíssimos de preservação dos saberes, da memória, da cultura, das nossas identidades.
Em suas pesquisas, Xavier descreve a qualidade do povoamento que, por meio do manejo socioambiental, do plantio em sistemas agroflorestais, da preservação de banco de sementes crioulas e do cuidado com a terra e com o bioma em que eles se encontram, viabilizam a preservação, a conservação e a recomposição dos ecossistemas naturais, práticas hoje fundamentais para a preservação do clima terrestre e da vida no planeta. Pergunto então às autoridades públicas federais: se desejam a proteção ambiental e a melhoria das condições climáticas por meio da preservação dos ecossistemas naturais, por que não agilizar o processo de reconhecimento destas comunidades e regularizar os títulos de propriedades ao invés de “passar a boiada” por meio de liberação de licenças ambientais para a construção de empreendimentos de luxo para turistas em remanescentes de matas, extração ilegal de madeira nativa promovendo o desmatamento, e degradação das terras brasileiras?
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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