Qual é a importância da preservação do patrimônio histórico urbano, como as vilas operárias?

Como uma cicatriz, as antigas cidadelas industriais expõem a ausência do Estado na formulação de políticas habitacionais para a população trabalhadora

  • Por Helena Degreas
  • 18/05/2021 09h00
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Arquivo Pessoal/Helena Degreas Igreja da Vila Operaria Maria Zelia com carros em volta e um jardim com árvores Igreja da Vila Operária Maria Zélia, hoje incrustrada no bairro do Belenzinho, em São Paulo

Ainda é possível encontrar nas cidades exemplares das antigas vilas operárias construídas pela Companhia Nacional de Tecidos de Juta no início do século 20, que serviam de moradia para os operários das fábricas. Mesclam-se aos bairros, às ruas e destoam dos demais edifícios do entorno. Para quê preservá-los? Para que se compreenda quais eram as condições de vida dos trabalhadores urbanos no início do século passado, e para que se entenda como a ausência de ofertas de habitação popular acessível ao bolso dos trabalhadores pelo poder público gerou a segregação de habitações subnormais construídas à margem das regulações urbanas.

Conto aqui um pouco da história da Vila Maria Zélia e de como o passar do tempo transformou o local em uma cicatriz urbana. Apesar de patrimônio tombado, encontra-se desconfigurada, com alguns dos edifícios em ruínas. Esta cidadela operária é um dos exemplares mais significativos da história da habitação destinada para a classe operária em São Paulo. Outro exemplo é a Fordlâdia, construída por Henry Ford no estado do Pará, e a Companhia Empório Industrial do Norte, fundada por Luiz Tarquínio em Salvador. Sirenes, regras de comportamento social e relógios de ponto integravam o cotidiano de vida daqueles que moravam em cidades construídas e administradas por fábricas em localidades isoladas em meio às propriedades rurais. Conhecidas como cidadelas operárias, cidades-empresa ou mesmo cidades-companhia, estes conjuntos urbanos surgiram a partir de meados do século XIX para abrigar os operários e suas famílias no Brasil, embora também já estivessem presentes nos Estados Unidos e fossem conhecidas como company towns.

Considerada um modelo, a Vila Maria Zélia, em São Paulo, foi construída pelo médico e industrial Jorge Street (1863-1938) para abrigar os 2,5 mil operários que trabalhavam na Companhia Nacional de Tecidos de Juta. Além das 220 casas, o local oferecia áreas públicas com praças, igreja, escolas (para meninos e meninas) e mercado. Além disso, havia todo o lazer necessário e atividades educativas, para afastar as classes trabalhadoras do “ócio que poderia levar aos bares, jogos de azar”, entre outros. A população de São Paulo saltou de 40 mil, em 1880, para 240 mil habitantes na passagem do século XIX para o XX, em função dos lucros obtidos durante o ciclo do café e as atividades fabris. As condições de vida dos migrantes, imigrantes e trabalhadores das fábricas não prosperou da mesma forma, e a oferta de novas moradias populares não acompanhou o mesmo ritmo. Com os baixos salários e sem a condição de pagar pelos altos aluguéis, esse conjunto de trabalhadores encontrou nos cortiços, estalagens, “casas de cômodo” e cubículos uma solução para a habitação. Nas áreas centrais, quartos, quintais e demais terrenos livres de casas e lotes eram modificados para locação destinada às famílias dos operários. Tanques, banheiros e cozinhas eram utilizados coletivamente. A falta de atendimento para a demanda de habitações populares por parte da prefeitura fez prosperar um novo negócio: a locação de cômodos na forma de cortiço que enriqueceu seus proprietários.

Espantosamente, ao invés dos senhores vereadores criarem políticas habitacionais para atender a demanda de habitações de baixo custo para a classe trabalhadora, optaram por gerar recursos com a exploração daqueles que não tinham condições de morar de outra forma. Assim, em 1877, a prefeitura passou a cobrar altos impostos sobre essas habitações. O início do século 20 marcou uma época de doenças e epidemias nas cidades, ocasionadas pela falta de investimento em saneamento básico e pelo lançamento de esgotos nas águas dos rios Tietê e Anhangabaú, transformando as águas limpas em um lodaçal pútrido. Convenientemente, “Cortiços, Casas Operárias e Cubículos” foram consideradas pelos vereadores como insalubres e responsáveis pelos problemas sociais e sanitários que a cidade enfrentava à época. Algumas modificações quanto às condições de salubridade necessárias para a construção e oferta deste tipo de habitação aos trabalhadores foram incorporadas ao Código de Posturas de 1886, delegando à iniciativa privada a oferta de moradia à classe trabalhadora. Novamente, a prefeitura se absteve de criar programas e ações públicas, como construção e oferta de moradias baratas aos trabalhadores.

Como solução, durante a revisão do Código de Posturas 1899, os vereadores definiram que a construção deste tipo de habitação só poderia ocorrer longe das áreas urbanas, afastando os trabalhadores das regiões centrais e evidenciando uma mentalidade discriminatória que não admitia a convivência de pessoas de baixo poder aquisitivo nos mesmos espaços urbanos que a população mais abastada. Restavam cortiços, estalagens, “casas de cômodos” ou as vilas operárias e cidadelas construídas pelos proprietários das fábricas, como a que citei no início da coluna. Era de se esperar que as regras de comportamento definidas pelos proprietários das empresas gerassem problemas e insatisfação dos moradores: apesar da aparência de uma cidade, o local era uma propriedade privada cujo principal objetivo era o de gerar lucros à fábrica. Com o passar das décadas, o crescimento populacional levou ao espraiamento de São Paulo. A cidadela, antes distante do centro, foi incorporada ao tecido urbano levando-a na atualidade a parecer um bairro. Contudo, sua forma de cidade causa estranheza para quem a vê por fora dos muros e não conhece o seu processo de formação histórica, o porquê de ter esta forma e a razão da deterioração e aparente abandono de seus prédios. Trata-se de um pedacinho da história que materializa nas casas antigas, nas escolas e na igreja a produção econômica da cidade no início do século 20. Por outro lado, traz nas suas formas a ausência histórica de políticas públicas e ações para atender às milhares de famílias que não tem acesso a linhas de crédito bancário baratas para poder adquirir o seu imóvel.

Nos anos 1930, a fábrica encerrou as suas atividades e passou por vários donos, sendo parcialmente demolida para a construção da fábrica da Goodyear. Até que, por volta dos anos de 1980, iniciou-se uma tentativa de preservação do local e dos edifícios, criando problemas de ordem jurídica que se estenderam tempo suficiente para a degradação do patrimônio cultural e o esquecimento de sua história. Se o aparato legal e os instrumentos institucionais existentes são incapazes de integrar o bem protegido à vida social dos cidadãos, o patrimônio histórico e cultural perde seu valor simbólico afastando-se do cotidiano de vida das pessoas e do local onde se insere. A degradação do objeto em si é uma ferida cicatrizada cujo valor esmaece com o passar do tempo, apagando sua história, seu significado na cidade. Alguns percebem que se trata de algo antigo, outros entendem como um conjunto de coisas velhas que precisam de reformas para ter novo uso e valor, e outros, provenientes do mercado imobiliário, como algo a ser demolido e reconstruído.

Algumas destas cicatrizes evidenciam-se na paisagem das cidades e são provenientes de políticas públicas habitacionais criadas para atender a demanda de moradias populares por meio do afastamento dos trabalhadores das regiões centrais. É o caso das cidadelas operárias que integram o patrimônio industrial brasileiro. A Vila Maria Zélia, hoje incrustrada no bairro do Belenzinho, em São Paulo, é uma espécie de ferida cuja cicatriz fica exposta num conjunto urbano tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) e o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Expõem não apenas a ausência do Estado na formulação de políticas habitacionais para a população trabalhadora, mas também a inabilidade dos órgãos de preservação na realização de ações que viabilizem a participação e interação da sociedade com o bem que se pretendem preservar.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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