Quando a convivência pacífica nas cidades é substituída pela barbárie

Em 500 metros de caminhada, vi imagens e situações que me fazem perceber que a empatia encontra-se cada vez menos constante em nossos pensamentos, empobrecendo-nos como humanidade

  • Por Helena Degreas
  • 14/09/2021 10h00 - Atualizado em 14/09/2021 12h59
Helena Degreas/Arquivo pessoal Carro branco com uma escada em cima estacionado em uma rua bem em frente a uma rampa, impossibilitando a saída de pessoas com mobilidade reduzida ou carrinhos de bebê Em apenas uma das andanças na quadra, vivenciei experiências como um carro de serviço público em cima de uma faixa de pedestre e sobre uma guia rebaixada

Sou uma das poucas brasileiras que, durante o período de pandemia, teve o privilégio de trabalhar remotamente e seguir à risca o afastamento físico necessário para poder ganhar o pão de cada dia e, ainda assim, seguir viva. A partir desta terça-feira, 14, sou uma das sortudas imunizadas e tenho alguma chance de não morrer caso venha a contrair a “gripezinha” do emocionalmente embrutecido Jair Bolsonaro, aquele que faz pouco caso dos quase 600 mil brasileiros que não terão a mesma oportunidade de seguir suas vidas, de amar, de se divertir, de sair com os amigos, de abraçar pessoas queridas, de sonhar, de envelhecer, após a pandemia da Covid-19. Ao afastamento físico seguiu-se também o social durante esse ano e meio. As oportunidades de colocar o nariz para fora de casa resumiam-se às caminhadas diárias com minhas cachorras: Ricota e Chanel que, felizes, fuçam tudo e todos por aí, alheias aos meus pensamentos por vezes melancólicos.

Observar as pessoas durante os passeios tornou-se meu passatempo predileto e, também, o que mais afetou meus sentimentos em relação à convivência possível entre as pessoas que utilizam o mesmo espaço físico que o seu: calçadas, pracinhas, travessias de ruas, jardins de prédios, entre outros. Conviver nunca foi fácil, mas acho que ando um pouco mais intransigente em algumas situações. Comecei a fotografar na esperança de que, ao materializar o que me afeta, de alguma forma eu consiga amenizar o estrago do impacto da falta de empatia e solidariedade que se apresentam obscenamente nos comportamentos e ações dos urbanoides. Percebo que a empatia, aquela vozinha que habita nossa consciência social e que nos permite colocar-se no lugar do outro, viver a partir das perspectivas do outro, encontra-se cada vez menos constante em nossos pensamentos e mais distante de nós, empobrecendo-nos como humanidade. Em apenas uma das andanças na quadra, vivenciei as experiências que descrevo: caminhão estacionado sobre a calçada, além de prestadores de serviços públicos sobre guias rebaixadas, faixas de pedestre, na esquina e sob a placa de proibido estacionar impedindo a circulação de pessoas com mobilidade reduzida e carrinhos de bebê.

Perguntei aos dois motoristas se eles poderiam estacionar em outro lugar para facilitar a vida dos pedestres já que as duas situações eram ilegais. Tanto um quanto o outro olharam para mim com a mesma expressão de “E daí?” e me deixaram falando sozinha. Em frente às poucas residências que ainda não foram demolidas pelos incorporadores imobiliários, lixos e mais lixos em sacos depositados pelos proprietários de residências fora do horário de coleta ao lado de troncos das árvores, como se a generosidade da sombra fresca proporcionada nos verões cada vez mais quentes fosse descartável também. E a senhorinha idosa que decidiu varrer a calçada com a mangueira usando a água potável que vem da rua? Perguntei se ela sabia que os níveis dos reservatórios estavam baixos e ela me disse o que? “Vai no mercado e compra de garrafinha que lá tem sempre”. Você e eu podemos descrever todas as cenas da falta de civilidade que nos rodeiam todos os dias e que expõem a raiva que habita em mim. Sinto-me violentada com as imagens e situações que presenciei em 500 metros de caminhada.

Dizem que a raiva é uma espécie de manifestação de alguma necessidade não satisfeita. Saí de casa para cuidar de minha saúde mental, gosto de gente, o afastamento das pessoas com quem gostaria de compartilhar uma palavra, um sorriso ou um abraço e que são parte da minha família social me fazem muita falta. Quero crer que, para muitos outros, a necessidade também seja a mesma. A raiva no meu caso resume-se à necessidade que tive de cuidar de mim saindo para tomar ar fresco fora de casa e de não conseguir ter paz num primeiro momento. De outra parte, observar indivíduos exercitando o individualismo absortos em si mesmos, fechados em suas cápsulas e interesses mesquinhos, incapazes de exercitar o cuidado com os outros me faz profundamente mal. Este é motivo da raiva. Dá para conseguir uma convivência pacífica, tranquila, uma cidade cujos indivíduos busquem uma sociedade mais justa e melhor? Duvido. Mesmo sem ter indivíduos concretos, reais, passando pela situação no momento, lembrei-me de outros cuja voz não se faz presente em lugar algum. Dei petisquinhos aos cães e pedi para que se sentassem quietinhos para que eu tomasse algumas providências. Moro na cidade de São Paulo e, portanto, busquei canais de comunicação com os responsáveis locais. Procurei a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) para comunicar a situação. Se houvesse alguma viatura próxima, os fiscais iriam até os locais. Duvido e até entendo: são poucos os fiscais e quando vem, a infração já ocorreu. É tanta a desfaçatez no uso do espaço público e nas regras não escritas de boa convivência entre pessoas que nem com todas as leis e fiscais do mundo o serviço seria realizado a contento.

Pensei em postar no Portal 156 da prefeitura. A homepage é pouco amistosa e resume-se ao formato de árvore de conteúdo, com raízes, galhos, folhas e tudo o mais, situação essa que confunde e obriga o cidadão a tentar adivinhar onde seu problema pode ser resolvido. Poderia ser melhor? Óbvio, mas é preciso que a prefeitura queira, ou seja, vem do senhor prefeito a vontade política para dar melhor acesso e interação aos cidadãos. Duvido que isso ocorra. À raiva somam-se o desalento, desamparo, abatimento e exaustão. Estamos sozinhos. Fui buscar alguma explicação lúcida como antídoto. Voltei para casa. Ricota e Chanel foram parar no sofá predileto, ao lado da minha minifloresta, buscando o vento que soprava pela janela da sala. Liguei para Karina Tomelin, psicóloga, educadora e amiga querida, para falarmos sobre empatia e seus efeitos no comportamento social em cidades. Ela explicou que algumas pessoas, ao verem a dor de alguém, são capazes de reconhecer e compreender as emoções envolvidas e de realizar ações que ajudarão o próximo. Acrescentou que indivíduos mais empáticos costumam exibir comportamentos pró-sociais e altruístas, habilidades que facilitam o fortalecimento de comunidades por meio de uma compreensão social positiva. Dito de outra maneira, as pessoas se importam com qualquer pessoa que se sinta vulnerável e agem no sentido de minimizar ou evitar o seu sofrimento.

Percebi o longo caminho que temos pela frente. Gestores e representantes públicos são feitos em sua maioria da mesma matéria emocional que a senhora idosa e os dois motoristas com quem esbarrei. Cara de “e daí?” ou “vai cuidar da sua vida” resultam em cidades desiguais e violentas com aqueles que são vulneráveis, e são gerenciadas por prefeitos, secretários e vereadores cujas ações concretas para minimizar as dores e cuidar das necessidades de quem precisa são pífias, e nunca chegam. Emocionalmente embrutecidos. Empatia zero. Aguardarei colaborando com minhas palavras e ações, torcendo para que chegue o dia em que a sociedade fragmentada pelos interesses individuais seja substituída pela cidadania esclarecida em que predomine a solidariedade, a empatia, a cooperação e participação ativa para a constituição de cidades mais justas e menos desiguais.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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