Quando a convivência pacífica nas cidades é substituída pela barbárie
Em 500 metros de caminhada, vi imagens e situações que me fazem perceber que a empatia encontra-se cada vez menos constante em nossos pensamentos, empobrecendo-nos como humanidade
Sou uma das poucas brasileiras que, durante o período de pandemia, teve o privilégio de trabalhar remotamente e seguir à risca o afastamento físico necessário para poder ganhar o pão de cada dia e, ainda assim, seguir viva. A partir desta terça-feira, 14, sou uma das sortudas imunizadas e tenho alguma chance de não morrer caso venha a contrair a “gripezinha” do emocionalmente embrutecido Jair Bolsonaro, aquele que faz pouco caso dos quase 600 mil brasileiros que não terão a mesma oportunidade de seguir suas vidas, de amar, de se divertir, de sair com os amigos, de abraçar pessoas queridas, de sonhar, de envelhecer, após a pandemia da Covid-19. Ao afastamento físico seguiu-se também o social durante esse ano e meio. As oportunidades de colocar o nariz para fora de casa resumiam-se às caminhadas diárias com minhas cachorras: Ricota e Chanel que, felizes, fuçam tudo e todos por aí, alheias aos meus pensamentos por vezes melancólicos.
Observar as pessoas durante os passeios tornou-se meu passatempo predileto e, também, o que mais afetou meus sentimentos em relação à convivência possível entre as pessoas que utilizam o mesmo espaço físico que o seu: calçadas, pracinhas, travessias de ruas, jardins de prédios, entre outros. Conviver nunca foi fácil, mas acho que ando um pouco mais intransigente em algumas situações. Comecei a fotografar na esperança de que, ao materializar o que me afeta, de alguma forma eu consiga amenizar o estrago do impacto da falta de empatia e solidariedade que se apresentam obscenamente nos comportamentos e ações dos urbanoides. Percebo que a empatia, aquela vozinha que habita nossa consciência social e que nos permite colocar-se no lugar do outro, viver a partir das perspectivas do outro, encontra-se cada vez menos constante em nossos pensamentos e mais distante de nós, empobrecendo-nos como humanidade. Em apenas uma das andanças na quadra, vivenciei as experiências que descrevo: caminhão estacionado sobre a calçada, além de prestadores de serviços públicos sobre guias rebaixadas, faixas de pedestre, na esquina e sob a placa de proibido estacionar impedindo a circulação de pessoas com mobilidade reduzida e carrinhos de bebê.
Perguntei aos dois motoristas se eles poderiam estacionar em outro lugar para facilitar a vida dos pedestres já que as duas situações eram ilegais. Tanto um quanto o outro olharam para mim com a mesma expressão de “E daí?” e me deixaram falando sozinha. Em frente às poucas residências que ainda não foram demolidas pelos incorporadores imobiliários, lixos e mais lixos em sacos depositados pelos proprietários de residências fora do horário de coleta ao lado de troncos das árvores, como se a generosidade da sombra fresca proporcionada nos verões cada vez mais quentes fosse descartável também. E a senhorinha idosa que decidiu varrer a calçada com a mangueira usando a água potável que vem da rua? Perguntei se ela sabia que os níveis dos reservatórios estavam baixos e ela me disse o que? “Vai no mercado e compra de garrafinha que lá tem sempre”. Você e eu podemos descrever todas as cenas da falta de civilidade que nos rodeiam todos os dias e que expõem a raiva que habita em mim. Sinto-me violentada com as imagens e situações que presenciei em 500 metros de caminhada.
Dizem que a raiva é uma espécie de manifestação de alguma necessidade não satisfeita. Saí de casa para cuidar de minha saúde mental, gosto de gente, o afastamento das pessoas com quem gostaria de compartilhar uma palavra, um sorriso ou um abraço e que são parte da minha família social me fazem muita falta. Quero crer que, para muitos outros, a necessidade também seja a mesma. A raiva no meu caso resume-se à necessidade que tive de cuidar de mim saindo para tomar ar fresco fora de casa e de não conseguir ter paz num primeiro momento. De outra parte, observar indivíduos exercitando o individualismo absortos em si mesmos, fechados em suas cápsulas e interesses mesquinhos, incapazes de exercitar o cuidado com os outros me faz profundamente mal. Este é motivo da raiva. Dá para conseguir uma convivência pacífica, tranquila, uma cidade cujos indivíduos busquem uma sociedade mais justa e melhor? Duvido. Mesmo sem ter indivíduos concretos, reais, passando pela situação no momento, lembrei-me de outros cuja voz não se faz presente em lugar algum. Dei petisquinhos aos cães e pedi para que se sentassem quietinhos para que eu tomasse algumas providências. Moro na cidade de São Paulo e, portanto, busquei canais de comunicação com os responsáveis locais. Procurei a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) para comunicar a situação. Se houvesse alguma viatura próxima, os fiscais iriam até os locais. Duvido e até entendo: são poucos os fiscais e quando vem, a infração já ocorreu. É tanta a desfaçatez no uso do espaço público e nas regras não escritas de boa convivência entre pessoas que nem com todas as leis e fiscais do mundo o serviço seria realizado a contento.
Pensei em postar no Portal 156 da prefeitura. A homepage é pouco amistosa e resume-se ao formato de árvore de conteúdo, com raízes, galhos, folhas e tudo o mais, situação essa que confunde e obriga o cidadão a tentar adivinhar onde seu problema pode ser resolvido. Poderia ser melhor? Óbvio, mas é preciso que a prefeitura queira, ou seja, vem do senhor prefeito a vontade política para dar melhor acesso e interação aos cidadãos. Duvido que isso ocorra. À raiva somam-se o desalento, desamparo, abatimento e exaustão. Estamos sozinhos. Fui buscar alguma explicação lúcida como antídoto. Voltei para casa. Ricota e Chanel foram parar no sofá predileto, ao lado da minha minifloresta, buscando o vento que soprava pela janela da sala. Liguei para Karina Tomelin, psicóloga, educadora e amiga querida, para falarmos sobre empatia e seus efeitos no comportamento social em cidades. Ela explicou que algumas pessoas, ao verem a dor de alguém, são capazes de reconhecer e compreender as emoções envolvidas e de realizar ações que ajudarão o próximo. Acrescentou que indivíduos mais empáticos costumam exibir comportamentos pró-sociais e altruístas, habilidades que facilitam o fortalecimento de comunidades por meio de uma compreensão social positiva. Dito de outra maneira, as pessoas se importam com qualquer pessoa que se sinta vulnerável e agem no sentido de minimizar ou evitar o seu sofrimento.
Percebi o longo caminho que temos pela frente. Gestores e representantes públicos são feitos em sua maioria da mesma matéria emocional que a senhora idosa e os dois motoristas com quem esbarrei. Cara de “e daí?” ou “vai cuidar da sua vida” resultam em cidades desiguais e violentas com aqueles que são vulneráveis, e são gerenciadas por prefeitos, secretários e vereadores cujas ações concretas para minimizar as dores e cuidar das necessidades de quem precisa são pífias, e nunca chegam. Emocionalmente embrutecidos. Empatia zero. Aguardarei colaborando com minhas palavras e ações, torcendo para que chegue o dia em que a sociedade fragmentada pelos interesses individuais seja substituída pela cidadania esclarecida em que predomine a solidariedade, a empatia, a cooperação e participação ativa para a constituição de cidades mais justas e menos desiguais.
Se todos os habitantes de uma cidade priorizassem o coletivo, a vida de cada um melhoraria individualmente?
Saiba mais na coluna de @helenadegreas https://t.co/BkXoNcnv0v
— Jovem Pan News (@JovemPanNews) September 14, 2021
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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