Querem fazer barulho no meio da cidade? Cubram os estádios!

Texto inserido no PL 362/2022, em fase de votação, abre margem para regularização de 85 decibéis como limite máximo em toda a cidade de São Paulo, assim, serão liberados megaeventos em estádios com alta pressão sonora

  • Por Helena Degreas
  • 15/11/2022 09h00 - Atualizado em 15/11/2022 10h15
karlyukav/Freepik mulher tapando os ouvidos com travesseiro Texto inserido no PL 362/2022, que está em fase de votação, quer regularizar limite de 85 decibéis na cidade de São Paulo

“Então… para tranquilizar a sociedade, a gente vai fazer com muita cautela, vamos votar em segunda [instância], tem ainda um longo caminho pela frente para poder aprimorar o projeto.” Esta fala é do vereador Fabio Piva (PSDB), líder do governo em entrevista concedida à Rede Câmara durante o processo de votação do PL 362/2022 que regulamenta as “dark kitchens” e que, de maneira inadequada, inseriu um “jabuti” por meio do Artigo 13, estabelecendo o limite máximo de 85 decibéis para shows, bandas e demais eventos que ocorram em estádios inseridos no miolo de bairros da cidade. Qual é a relação entre os dois assuntos? Nenhuma. Trata-se de um “jabuti” que, no jargão político, significa a inserção de um assunto sem relação com o tema original da proposta. Uma espécie de contrabando. Devo dizer que, apesar de sua fala, não me sinto nem um pouco tranquila com a aprovação em primeira votação. De qual projeto estamos falando? Da regulamentação das “dark kitchens” ou do “jabuti” que, espertamente, foi inserido no PL 362/2022 e que trata da regularização de 85 decibéis em todo o território da cidade de São Paulo? Com esta manobra, shows, bandas e demais eventos em estádios inseridos no miolo de bairros residenciais poderão acontecer dentro destes limites. Nesta categoria, ficarão liberados, se passar pela votação em segunda instância, os megaeventos em estádios como o Allianz Parque, o Pacaembu, a Arena Corinthians, o Canindé e o Morumbi, por exemplo. E durma-se com um barulho desses.

Para quem não sabe bem o que significam 85DBA, vou exemplificar: para dormir, a pressão sonora adequada é de até 50DBs. É como dormir com pessoas conversando na sala ao lado com uma porta fechada. O que se propõe, 85DBs, é um absurdo. É barulho. Imagine você, leitor, passar cerca de 3 ou 4 horas com um secador de cabelos ligado na sua frente (80DBs). E mais: a barulheira ocorrerá sistematicamente, a partir das oportunidades de negócios que serão gerados pelas empresas promotoras dos eventos, podendo repetir-se em todos os finais de semana, feriados e toda vez que, quando solicitada, a prefeitura autorizar o evento. Quem vai conferir se o som emitido respeita os índices que, espero, não sejam regulamentados? O Programa Silêncio Urbano conhecido como PSIU? Farão o quê? Tem poder para multar ou cancelar o evento autorizado pela prefeitura? Trata-se de um atentado à saúde pública que claramente prejudica seres humanos em nome dos benefícios econômicos que serão gerados para e pelo ecossistema de negócios voltados ao entretenimento. Entre empresas e cidadãos, claramente o prefeito Ricardo Nunes fez a sua escolha. Ouviu os moradores, as associações de bairro, os conselhos municipais? Utilizou os instrumentos de que dispõem para avaliar se a população do entorno destes locais deseja isto? Não.

Como cidadã, compartilho da sensação de incerteza frente ao que ocorrerá no segundo turno da votação da PL caso seja aprovada em segunda instância pela Câmara de Vereadores de São Paulo. Associações de moradores, conselhos municipais e diversos fóruns de debates promovidos por instituições universitárias apresentaram argumentações técnicas, construídas à luz da ciência e esclarecedoras. Fizeram muito mais do que a singela expressão “entendimento da prefeitura”, proferida por Fabio Piva (PSDB), do que é correto a se fazer ao longo da entrevista. Para além do certo x errado, correto x incorreto, recomenda-se que o líder da governo na Câmara, juntamente com os demais vereadores que aprovaram em primeira votação o jabuti inserido no PL 362/2022, uma discussão profunda sobre os efeitos adversos à vida da população diretamente afetada pelos barulhos, tratando paralelamente eventuais mitigações aos danos causados à cidade pela exploração econômica de eventos privados de edifícios multifuncionais de grande porte inseridos em bairros. 

Como representante eleita do CADES Regional Pinheiros (Conselho Regional de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Cultura de Paz Pi), Ana Maria Wilheim, socióloga, recomenda que o assunto seja tratado separadamente em projeto de lei específico. A temática econômica não pode prevalecer sobre os demais interesses que afetam a população. Cabe, portanto, seguir uma tramitação mais lenta junto à Câmara dos Vereadores, pautada, sobretudo, em normativas respaldadas pela áreas que envolvem as ciências da saúde. Cita, como exemplo, a legislação que define o tipo de vedação adotada por bares e restaurantes para impedir a difusão de sons provenientes de conversas mais animadas ou até músicas com shows ao vivo nestes recintos e que trazem, sistematicamente, incômodos à vizinhança. “Não podemos tratar ruídos intensos e demais barulhos como incômodos. É mais do que isso: afeta a saúde dos cidadãos”, reafirma a socióloga.

É a terceira vez em menos de uma ano que trato de temas relacionados aos prejuízos à saúde física e mental do cidadão relacionados aos barulhos provenientes das atividades que ocorrem diariamente na cidade. Não vou me estender, mas se civilizada fosse a gestão do interesse público, estaríamos discutindo os benefícios trazidos pela elaboração de cartografias sensoriais e mapas de ruídos urbanos criados a partir da implantação de sensores capazes de mensurar as características sonoras das ruas, praças, parques e demais logradouros públicos urbanos, realizadas sistematicamente por instrumentos já implantados em várias cidades mundo afora. São tecnologias existentes que, se instaladas e aferidas por órgão competente (pode ser o próprio PSIU, desde que sua infraestrutura física e humana seja atualizada para atender as expectativas da nova demanda), em muito contribuirão para reduzir a frustração da população frente às práticas de gestão dos ruídos e barulhos urbanos em cidades. E mais: trarão benefícios econômicos se bem exploradas, como já o fazem mundo afora, empresas relacionadas pela área de turismo. E por que a prefeitura de São Paulo bem como seus vereadores não estabelecem normais legais obrigando estádios a cobrir seus edifícios? Exemplos não faltam. 

Projetos de arquitetura de estádios em ambientes urbanos existem aos milhares e não são novidade. Existem tecnologias fantásticas que permitem, inclusive, desmontar estádios cobertos inteiros e reconstruí-los em outras cidades quando necessário. O Mercedes-Benz Stadium (Atlanta Falcons da NFL e do Atlanta United da MLS) foi projetado pelo escritório de arquitetura HOK e logo transformou-se num ícone capaz de prover experiências estéticas inesquecíveis para os fãs e demais frequentadores. A equipe projetou uma cobertura móvel composta por 8 pétalas (67 metros de comprimento) que, ao serem acionadas, abrem e fecham em cerca de 8 minutos, transformando-se num espetáculo em si. Os jogos da Copa que ocorrerão no Qatar 2022 em novembro também apresentam exemplos de tetos retráteis em estádios inseridos em ambientes urbanos. Que prevaleça o bom senso e que este jabuti desapareça e dê lugar a um projeto de lei que trate dos interesses públicos dos cidadãos. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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