Uma cidade inteira para brincar: por que as crianças também devem opinar no planejamento urbano

Ouvir os pequenos e valorizar suas experiências pode nos ajudar a ter uma abordagem mais criativa do espaço público; em Jundiaí, o Conselho Infantil ajudou a elaborar o projeto Ruas de Brincar

  • Por Helena Degreas
  • 15/06/2021 09h00 - Atualizado em 15/06/2021 10h16
Helena Degreas/Jovem Pan Pequena bicicleta multicolorida está parada na rua bem perto de um cone da CET e de um caminhão Jogar futebol ou andar de bicicleta em ruas, calçadas ou espaços públicos próximos a habitações é impensável nos dias de hoje

As crianças veem o mundo de uma maneira diferente daquela como nós, adultos, somos capazes de ver e perceber. Os significados de infância, do brincar e até mesmo do que “é uma criança” mudam de acordo com o contexto histórico, cultural e social. Na Idade Média, por exemplo, as crianças eram vistas como uma espécie de adulto, só que em tamanho pequeno. Como “adultos tamanho P”, elas cresciam trabalhando como os demais membros do grupo social do qual faziam parte. A infância era apenas um período de transição para a vida adulta. O desenvolvimento infantil, por meio do brincar, não era a preocupação da época. O estímulo à realização de atividades lúdicas, em que a imaginação, a realidade e a fantasia se misturam, criando novas possibilidades de interpretação da vida — quer isoladamente, quer na interação com outros indivíduos —, é uma preocupação contemporânea, que deve ser objeto de preocupação no planejamento das cidades contemporâneas e das regiões metropolitanas.

As cidades são planejadas sob a ótica dos adultos e para atender as necessidades dos adultos do gênero masculino, jovens, sem deficiências e que se locomovem predominantemente por meio do automóvel particular. São motoristas que veem a cidade pela janela do carro, preferencialmente com o vidro fechado e o ar-condicionado ligado. E sempre com pressa, muita pressa. O resultado encontra-se nas cidades fragmentadas por quilômetros e mais quilômetros de vias de alta velocidade, calçadas estreitíssimas, semáforos cujo tempo de travessia despreza aqueles que têm locomoção reduzida (como crianças), estacionamentos em vias públicas e locais para onde meninas e meninos estão autorizados a brincar: playgrounds em pracinhas, parques e algumas instituições. 

Para a criança idealizada pelos manuais da literatura ou em países em que a desigualdade socioeconômica não obrigue os pequenos a trabalharem vendendo doces ou fazendo malabares em semáforo para conseguir alguns trocados, os playgrounds em pracinhas são os ambientes destinados às brincadeiras. Para os demais que habitam em assentamentos urbanos cujas ocupações ocorreram à margem das regulações urbanísticas, a distribuição destas áreas é inadequada, quando não inexistente. Como membros da sociedade, a cultura lúdica da criança é influenciada pela cultura do grupo em que se insere. Isso diz muito sobre o que estamos fazendo com nossas crianças e jovens.

O alto índice de violência nas regiões metropolitanas e nas grandes cidades brasileiras privou o direito de crianças desenvolverem atividades lúdicas nas calçadas, nas ruas e em demais espaços livres públicos urbanos. Brincadeiras que são desenvolvidas individualmente ou em grupos como futebol, corridas, andar de bicicleta, skate, e que poderiam ocupar ruas, calçadas, espaços públicos próximos a habitações são impensáveis hoje. Lembro-me de, quando criança, de reunir vizinhos para brincar de esconde-esconde, pular corda, bolinha de gude, amarelinha, pular elástico, cabo de guerra… Os vizinhos, mesmo dentro de casa ou das lojas, observavam as crianças atentos a todas elas. Broncas várias. Ralou o joelho? Cuidado com a poça que sua mãe te põe de castigo! Fez a lição? A bola quebrou minha vitrine, vou chamar teu pai e você vai ver, moleque! Amistosos ou não, os gritos nos faziam entender que tinha alguém por perto vigiando.

Não sou saudosista. As formas de brincar e socializar mudaram para alguns grupos sociais: se para a criança idealizada no século 20 a cultura lúdica agora é digital e realizada dentro dos espaços confinados do lar, em especial no período da pandemia, para aquelas que habitam a cidade ilegal, o espaço cotidiano reflete a falta de equipamentos públicos para recreação, além da exposição aos riscos de vida provocados pela brutalidade policial, por eventuais ataques criminosos (balas perdidas e assaltos), por sequestros, por atropelamentos, entre outros. Acesso à internet e wi-fi em bairros periféricos? Só se tiver antena por perto. E isso não tem. Em paralelo, a cultura de consumo contemporânea, utilizando-se dos meios de comunicação em massa, colocou a criança no centro das decisões, substituindo o lúdico pelos objetos de brincar, sejam digitais ou materiais.

Apesar de todo o aparato legal e dos acordos internacionais sobre proteção e direitos da criança — dos quais o Brasil é signatário —, ainda há um caminho longo a se percorrer no que diz respeito à mudança de cultura dos gestores públicos. Papéis assinados temos muitos. Já a realidade mostra uma outra foto: insegurança, segregação e violência de todo tipo. Ouvir as crianças e valorizar suas experiências também pode nos ajudar a ter uma abordagem mais criativa do espaço urbano. Foi o que fez a cidade de Jundiaí ao aderir à Rede Latino Americana – Projeto Cidade das Crianças. Idealizado pelo pedagogo italiano Francesco Tonucci, o programa propõe a criação de conselhos infantis em prefeituras municipais, que se comprometem a escutar as falas das crianças e executar algumas das suas ideias. No caso de Jundiaí, o programa incluiu o projeto Ruas de Brincar. 

Na cidade de São Paulo, pesquisas realizadas a partir de consultas às crianças geraram modificações em bairros próximos às regiões escolares, como São Miguel Paulista. A pesquisa apontou a insatisfação em relação às calçadas estreitas, ao medo de acidentes nas travessias de ruas e insegurança para pedalar até a escola. Como resultado, calçadas foram redesenhadas, a velocidade dos automóveis diminuiu para 40 km/h, pistas cicláveis foram incluídas, os tempos semafóricos foram alterados privilegiando o pedestre na travessia e a sinalização viária foi modificada para atender aos pequenos. Uma série de oficinas locais foram realizadas com vários grupos populacionais, objetivando retomar as conexões sociais perdidas entre a casa, a escola, a igreja, os comerciantes e a crianças ao longo de todo o caminho por elas percorrido. Retomaram o que acontecia quando, ainda criança, eu brincava na rua: o olhar da vizinhança zelava pelo bem-estar infantil. Ao escutar as falas das crianças e incluí-las no processo de planejamento de nossas cidades, temos oportunidades de melhorar os espaços públicos para todos os cidadãos. Em vez de deixar “cercadinhos” ou “playgrounds” em pracinhas e parquinhos, os gestores municipais deveriam pensar as cidades como vastas áreas de recreação e convivência públicas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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