Siri, minha assistente de voz bisbilhoteira, recomendou que eu fosse morar num condomínio construído pela Disney World
Uma conversa telefônica sobre cidades e bairros projetados, motivada pela falta de solução para os problemas que afetam minha qualidade de vida, não passou despercebida pelo dispositivo virtual
Durante palestra realizada na quinta passada para o Centro Universitário Rio Branco U:verse (Acre), fui questionada sobre minha percepção quanto os impactos causados pelos problemas urbanos na saúde mental da população em cidades grandes. Tomei um susto. Respondi a partir dos conteúdos que comentei durante a palestra, adicionando que prefeituras deveriam tratar a questão relacionando-a à saúde pública. Não saí satisfeita com minha resposta. A pergunta continuou me incomodando ao longo dos demais dias. Um estado de ansiedade tomou conta de mim. A ansiedade não é uma emoção como a felicidade, a tristeza, a raiva, que podem durar por um tempo. Todos estes sentimentos eu consigo resolver: busco outra atividade, falo com amigos, leio um livro, como um doce. No caso da ansiedade, não funciona assim. É uma sensação ruim, que coloca todo o meu corpo físico e meu estado mental em alerta, como se estivesse diante de algo que não posso controlar, pois depende de situações que vão além da minha possibilidade de ação.
Posso afirmar que sinto certa tensão relacionada a uma perda futura, da qual não posso fugir ou evitar. São situações que estão sendo controladas e decididas por outras pessoas, empresas, governos, qualquer coisa e qualquer um, menos eu. Sabe aquele medo de ser assaltada? Para quem, como eu, já sofreu 24 assaltos a mão armada (de leves a violentos), não é fácil. Saio às ruas sabendo que a segurança pública municipal e estadual não passam de contos da carochinha. Querido leitor, você também se sente assim como eu? Não tem o que fazer, é só seguir o conselho dos diversos delegados: fique esperta, entregue todos os seus pertences etc. e tal. Conforme-se, em outras palavras: “Nós, policiais responsáveis pela segurança pública, temos certeza de que não somos capazes de proteger você, cidadã. Deixe-se assaltar. É mais seguro confiar no bandido do que em nossa capacidade de te proteger”. Daquele dia em que fiz a palestra até hoje, em que entrego a coluna, parece uma eternidade. Viver em cidades nas quais a população encontra-se praticamente entregue à própria sorte leva a um estado de ansiedade coletiva gerado pela falta de esperança de controle mínimo individual e coletivo do porvir. Não temos certeza e confiança na prestação de serviços públicos dos entes municipais, estaduais e federais.
É como se fosse um gatilho que, de tanto acontecer na vida cotidiana, ao menos comigo, transforma-se em sensação crônica capaz de adoecer minha alma e meu corpo. Os cidadãos sentem-se doentes. Exemplos não faltam: é o rapaz que, armado, vai até à escola pública e mata seus colegas. É o motorista que, distraído ou bêbado, mata e atropela um pai, um namorado ou o filho de alguém. É o prefeito que, mesmo com verba disponível e obrigado pelo Plano Diretor, posterga a publicação do Plano Municipal de Redução de Risco (PMRR), colocando a vida dos cidadãos em perigo. É o vereador, daqui de São Paulo, que, para ampliar os ruídos de bares e de estádios, incorpora um “jabuti” ou um Cavalo de Troia (malware cuja função é enganar o usuário sobre sua verdadeira intenção) que, ao final, causará danos à saúde coletiva pública com os 85 decibéis (um secador de cabelos) propostos para toda a cidade. E mais: garantindo, sem enrubescer, que tanto o Psiu (Programa de Silêncio Urbano) quanto as subprefeituras darão conta da fiscalização a partir das reclamações feitas pela população no portal 156 da Prefeitura de São Paulo. Tem como manter-se são? Tanto os entes da federação quanto os políticos eleitos por nós se descolaram da realidade do cidadão comum e trabalham para nos enlouquecer.
Incerteza e imprevisibilidade rondam a mente do cidadão comum que, distante dos trâmites burocráticos municipais e incapazes de acessar os complexos portais digitais públicos, quer pela complexidade, quer por não ter como pagar um provedor particular, veem-se imersos em situações crônicas de insolubilidade dos problemas que afetam a sua qualidade de vida pública, impactando na saúde física e mental. Perguntei para Elaine Pitzalis, CEO da Pitzalis Publicidade, que vive e trabalha há anos no Alphaville Residencial (Barueri, na Grande São Paulo), quais são os benefícios e problemas vivenciados por ela no seu dia a dia. “Comércios e serviços são todos muito próximos. Existem escolas e todas as funcionalidades de um bairro. Como não passo o dia no trânsito, tenho mais tempo para a família e lazer.” Acrescenta, logo depois, que tem consciência de que poucos são os brasileiros que podem manter financeiramente os benefícios de uma gestão eficaz nos locais onde vivem. Por esta razão, a moradora afirma que cabe às prefeituras criarem sistemas de gestão administrativa e institucional que priorizem o bem-estar e facilitem a vida do cidadão, independentemente do perfil social, econômico, cultural, étnico. Cidades têm que acolher a todos e bem, sem exceção.
Siri, minha assistente de voz bisbilhoteira — privacidade das informações? Rindo alto aqui —, apresentou-me, logo após a conversa telefônica sobre cidades e bairros projetados, o mais recente empreendimento da Walt Disney World Corporation. Num terreno de mais de 30 mil m², pretende-se construir uma cidade cujas unidades habitacionais sejam economicamente viáveis e financeiramente acessíveis às comunidades de baixo poder aquisitivo e que atualmente moram próximas ao parque temático Magic Kingdom. O urbanismo e o projeto serão construídos por meio de uma parceria entre as lideranças das comunidades locais, a prefeitura (por meio do Programa Habitacional do Condado de Orange), a empresa de desenvolvimento imobiliário The Michaels Organization e a Walt Disney World Corporation. Vi as imagens. Morri de inveja de quem vai morar ali. Ruas planejadas, calçadas largas, ciclovias, completamente arborizada e florida, banquinhos por toda a parte. No pacote, a promessa de gestão eficaz garantida pelas empresas envolvidas em parceria com a prefeitura. Como urbanista que mora e trabalha em um país onde mais da metade da população é excluída de seus direitos à cidade e à dignidade humana, às vezes não vejo saída e fujo da realidade. A ansiedade, aquela que me leva a um estado físico e mental de desalento, virou crônica.
Vivemos num filme de terror meticulosamente construído pelos gestores públicos municipais ao longo de todo o processo histórico de constituição das cidades brasileiras, situação que leva cidadãos ao desespero, vez que não se apresenta perspectiva de solução próxima. Se prefeito, secretários e vereadores das nossas cidades nos tratam, mesmo cobrados por abaixo assinados constantes, pelos jornais, rádios e TVs, projetos de lei que maldosamente incluem “malwares” e jabutis para nos prejudicar, o que mais podemos esperar de representantes políticos que vivem em sua própria ilha da fantasia? Quando a prefeitura e os representantes políticos são ineficazes na prestação dos serviços básicos de segurança, saúde, cultura, educação, assistência social e zeladoria urbana, a qualidade de vida pública urbana prejudica a saúde mental e física da população.
Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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