Vendedores de comida na rua resistem às investidas de regulamentação das prefeituras

Tensões com o fisco e as autoridades municipais permanecem inalteradas há séculos; por mais incrível que possa parecer, ainda hoje discute-se a comercialização e ‘privatização para uso comercial’

  • Por Helena Degreas
  • 13/07/2021 10h00 - Atualizado em 13/07/2021 13h29
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Helena Degreas Carrinho com várias espigas de milho verde e uma panela de pressão Espaço público acolhe uma série de ambulantes que alimentam milhares de pessoas diariamente com comidas como o milho-verde

As comidas de rua sempre estiveram presentes nas cidades brasileiras. Grande refeitório a céu aberto, o espaço público acolhe uma série de ambulantes que alimentam milhares de pessoas diariamente com comidinhas que cabem no bolso e no paladar até dos clientes que, como eu, são “chatíssimos pra comer”: sacolé de mangaba, cachorro-quente, churrasquinho “de gato”, milho verde e pamonha quentinha, pipoca, algodão doce, churros recheados, empadinha (compradas dentro dos ônibus), bolos e mais bolos em fatias, café, água, refrigerante, tapiocas, pastéis e frutas de todos os tipos. Não muito distante dos motivos que levam milhares de pessoas a comercializar alimentos nos espaços públicos – neles incluo meu tio Nicolas que, como imigrante recém-chegado nos anos 1950 e sem grana nenhuma no bolso, inovou no centro de São Paulo vendendo melancia e abacaxi em fatias para os paulistanos famintos que podiam saboreá-los ali, no ato, antes de levar para casa, a venda de comida acontece nas ruas, becos, praças, parques, em frente às escolas, nas estações de trem, metrô, ônibus, em ruas comerciais, teatros, cinemas, nos semáforos, na frente dos pontos de balada, nas ruas de lazer fechadas nos finais de semana… Haja comida para alimentar tanta gente!

Em seu livro “Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX”, a historiadora Maria Odila Leite Dias relata a vida de um grupo social até então pouco estudado que era composto prioritariamente por famílias pobres, chefiadas por mulheres brancas proprietárias de escravos e que tinham como principal fonte para o seu sustento e o de suas famílias o comércio ambulante de alimentos e “pães de vintém” nas ruas do centro da cidade. Figuras populares, uma delas chegou a dar nome a um beco aqui em São Paulo, situado num trecho da rua Quintino Bocaiúva: Beco Ângela Vieira. Dentre os quitutes vendidos pelas escravas quitandeiras, encontrava-se uma iguaria muito apreciada tanto pela população pobre quanto pela abastada: içás ou saúvas fêmeas torradas. Atritos com fiscais, autoridades, comerciantes e acusações de toda sorte marcavam uma rotina tensa à época: eram acusadas de comércio ilegal, atravessamento na compra de farinha e de falsificar o pão introduzindo misturas compostas por ingredientes estranhos como serragem de madeira, por exemplo. Uma vez por ano, todas eram convocadas pela Câmara para pagar licenças pelas escravas quituteiras e conferir pesos e medidas de suas balanças. Como os vereadores regulavam o preço do pão, as vendedoras não poderiam cobrar preços inferiores àqueles impostos pela Câmara. Eventualmente, eram denunciadas aos fiscais por taberneiros ou por concorrentes locais que viviam inconformados com os valores cobrados e com o crescimento da clientela destas vendedoras. 

Em sua coluna “Qual o sabor da sua cidade?”, o jornalista Rodrigo Iacovini comentou sobre a importância do papel desempenhado pela comercialização da comida de rua por ambulantes para a manutenção de diversas dinâmicas econômicas sociais e culturais intrínsecas à vida urbana. É por meio da obtenção de licenças para uso do espaço público que a desigualdade evidencia-se. Em algumas cidades como Fortaleza (eu acrescentaria São Paulo e tantas outras), é menos burocrático e lento obter o fechamento de uma rua central para um evento patrocinado por empresa de grande porte do que conseguir a autorização para estabelecer-se como vendedor ambulante. Por que isso? Dois séculos se passaram e as tensões com o fisco e as autoridades municipais permanecem inalteradas. Dias enfatiza que a maneira de sobreviver implicava a liberdade de circulação e venda nos espaços públicos urbanos porque dependiam de um circuito ativo de informações, bate-papos, leva e traz, contratos verbais contra os quais havia medidas de repressão forjada pelo sistema colonial destacando-se licenças, toques de recolher, passaportes, salvo-condutos dentre outras ações que dificultavam quando não impossibilitavam o seu ganha-pão.

Podemos afirmar que as ações fiscalizadoras e intimidadoras das municipalidade continuam bem atuais. Por mais incrível que possa parecer, ainda hoje discute-se a comercialização e “privatização para uso comercial” do espaço público como se parklets, frentes de restaurantes e lojas que atravancam a circulação dos pedestres com suas mesinhas em calçadas estreitas não fossem “apropriação” inadequada ou até, pela falta de fiscalização (surpreendente!), indevida. Depois dizem que o tabuleiro de acarajé ou o carrinho que vende frutas são os principais problemas provenientes da apropriação privada do espaço público… Sem recursos para a subsistência de suas famílias, as quituteiras e padeiras são os ambulantes contemporâneos que, desde então, resistem às investidas das prefeituras na regulamentação de práticas que claramente são estratégias de sobrevivência de grupos sociais excluídos do mercado de trabalho formal.

Regulamentar seus locais de trabalho, seus horários e demais formas de atuação transformando-os em pequenos empresários que pagam taxa diária para a exploração do local público depois de requerida uma longa burocracia para conseguir o Termo de Permissão de Uso (TPU) temporário para se instalar por 90 dias num lugar pré-estabelecido por técnicos municipais demonstra, no mínimo, desconhecimento, ou displicência para com a dinâmica social das cidades. A frase é longa, mas tentei descrever propositadamente parte do calvário enfrentado por quem precisa comprar a comida do jantar da família ou não ser despejado ao final do mês porque não pagou o aluguel vendendo comida na rua. Transformações nos estilos de vida, comportamentos de grupos sociais, flexibilização dos horários de trabalho, redução dos salários, o tempo despendido no trânsito e na locomoção de passageiros nos transportes públicos além da pressa, sempre muita pressa para resolver assuntos diversos, muda também a relação com a comida que encontra, nos produtos disponíveis prontos ou de rápida execução, a preços baixos e acessíveis e em muitos casos com pagamento realizado por meio de “contratos verbais”, ou “na palavra”, atrativos suficientes para atender a dinâmica atual das populações que estão nas ruas.

Para ilustrar, são cerca de 15 milhões de brasileiros que tem que “se virar” hoje para pagar contas: em outras palavras, desempregados. São pessoas como a Gabi de quem compro trufas semanalmente na rua onde moro: sem trabalho desde maio de 2020, ela desistiu de procurar emprego. É graduada em engenharia civil, mestre em gestão de empresas e vende trufas diariamente ao lado da estação de metrô para sustentar a família. É o grupo descrito pelo Dieese como o de “desalentados” que somam, em 2021, cerca de 5,952 milhões. Pedir para a Gabi virar microempresária, empreendedora (está na moda chamar pessoas que atuam no mercado informal de empreendedores) que paga uma taxa diária, para ocupar um lugar que alguém de algum gabinete da prefeitura definiu sabe-se lá com quais critérios, em caráter temporário, renovando a licença sistematicamente, para garantir que quando a fiscalização for fiscalizar, a papelada esteja toda certa… que ela leve junto com o tabuleiro das trufas… não dá. Século XXI, duzentos anos depois e a Gabi, a quituteira contemporânea, tendo que conseguir a tal licença da “Câmara” para conseguir o ganha pão que vai alimentar a família toda hoje à noite. Faça-me o favor!

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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