As eleições brasileiras são as piores do mundo; quanto mais o tempo passa, menos se aprende

A cura para a desgraça que é o pleito realizado no Brasil é um conjunto de meia dúzia de providências bem simples como a tabuada

  • Por J.R. Guzzo
  • 31/10/2020 10h00
José Cruz/Agência Brasil urna eletrônica sobre uma mesa após votação O primeiro turno das eleições municipais deste ano no Brasil ocorre no dia 15 de novembro; o segundo turno será no dia 29 de novembro

Num dos melhores momentos de sua viagem (viagem mesmo, em todos os sentidos) ao País das Maravilhas, Alice pergunta à Tartaruga Falsa quantas horas de aula por dia ela tinha tido ao longo do seu processo educacional. Dez horas no primeiro dia, responde a Tartaruga. Nove no dia seguinte. Oito no outro dia — e assim por diante, até o zero. Em suma: era um sistema através do qual todos aprendiam cada vez menos quanto mais o tempo passava. Nada mais natural no mundo incompreensível e, ao mesmo tempo, perfeitamente lógico, no qual Alice havia entrado — mas só lá. Ou melhor: lá e no Brasil. Eis aí, na verdade, o retrato pronto e acabado do eleitorado brasileiro de hoje.

Já são 32 anos seguidos, desde que a Constituição Cidadã de 1988 desabou sobre a sociedade brasileira, que a população é obrigada de dois em dois anos, com a regularidade das fases da Lua, a votar nas eleições destinadas a escolher de vereador a presidente da República. Deveria ter sido tempo mais do que suficiente para os eleitores aprenderem a votar direito — expulsando da política a multidão de candidatos-bandidos que frequenta as campanhas, senadores que escondem dinheiro na cueca e mais do mesmo. Era o que estava previsto na melhor teoria. Quanto mais votassem, mais as pessoas aprenderiam a votar bem; começariam, então, a dar seus votos a candidatos mais comprometidos com o interesse público, e não à essa manada de vigaristas que anda por aí. Com o tempo, e de um modo geral, iriam sobrar apenas os bons elementos. Mas, obviamente, o aprendizado que os nossos doutores em ciência política imaginaram para o Brasil deu errado. Não é uma estimativa. É o que demonstram os fatos.

Quanto mais tempo passa — 32 anos, agora — menos se aprende. Em vez de melhorarem, os candidatos pioram a cada eleição. Em vez de escolher políticos menos ruins, o eleitorado manda para o governo os que são mais absurdos. Basta ver os que estão aí, em todos os níveis — alguém acredita, sinceramente, que a maioria desses governadores, deputados, senadores etc., etc., seja gente boa? Ou, ao contrário, que sejam uma das piores coleções de delinquentes já reunidas na vida pública brasileira? A prova mais chocante do colapso geral do sistema é a lista atual de candidatos para os 5.500 cargos de prefeito e quase 60.000 vereadores que têm de ser preenchidos nas eleições municipais deste mês de novembro. É um trem fantasma.

O que temos, mais uma vez, nesse curioso processo de aprendizado ao contrário, é a costumeira aglomeração de casos perdidos. Qual “agência de checagem de fatos”, destas que estão terrivelmente em moda hoje em dia entre os veículos de comunicação, daria o seu selo de qualidade aos candidatos que concorrem, por exemplo, à Prefeitura de São Paulo? É uma das maiores cidades do mundo; seu prefeito e vereadores teriam de ser as pessoas mais qualificadas do país para ter alguma chance, apenas isso, de lidar de maneira razoável com os problemas monumentais do município e as opções que há diante deles. Mas o que acontece é o exato contrário. Os candidatos impostos pelos partidos para a eleição de 2020 são os piores que temos desde o Padre Anchieta, 466 anos atrás. Não conseguiriam governar um clube de pingue-pongue; querem mandar nos 12 milhões de moradores de São Paulo.

O voto distrital implode o sistema em vigor e elimina quase todos os seus vícios

Você sabe muito bem quem são eles. São políticos fracassados, que já tiveram todas as chances para errar e não perderam nenhuma. É gente que já governou e não fez nada que prestasse. São os perdedores de sempre, que disputam a eleição unicamente porque têm à disposição o dinheiro do “fundo eleitoral” que arrancam dos impostos pagos pelo público em geral. São os aventureiros de sempre — que, vendo o baixíssimo nível dos seus concorrentes, acham que vale a pena entrar nessa loteria. São as nulidades sem cura, os marginais mais ambiciosos e, em certos casos, os representantes do crime organizado — esses mesmos que o ministro Marco Aurélio manda soltar e o ministro Fachin protege; já proibiu os voos de helicóptero da polícia sobre as favelas, e agora quer proibir a revista dos visitantes que recebem quando estão na cadeia.

Votar direito como, se os candidatos são esses aí, abençoados pela Justiça Eleitoral depois de passarem, rindo, pelos seus filtros? O Brasil, aliás, deveria ter os melhores políticos do mundo — é a única democracia no planeta Terra que tem uma ”Justiça Eleitoral”, com um tribunal supremo, 27 “tribunais regionais” (cada um com o seu próprio palácio), altos funcionários e um custo, para o cidadão, de R$ 9,2 bilhões por ano, ou R$ 25 milhões por dia. (A “Justiça Eleitoral”, como se sabe, é capaz de gastar mais em anos em que não há eleições.) Em resumo: é um fenômeno. Só que os governantes que saem dessa paçoca pioram, em vez de melhorar; está na cara que o papel didático da burocracia eleitoral está sendo um completo fracasso.

É uma penitência, realmente, ouvir várias vezes por dia no rádio e na televisão o ministro Barroso, que no momento é quem preside esse TSE, usar o dinheiro dos seus impostos para pôr no ar, mais uma vez, as eternas campanhas destinadas a ensinar como você deve votar. Como descrito acima, o resultado de tudo isso, em termos de qualidade dos políticos eleitos, é igual a três vezes zero. Mas é claro que as aulas de moral, de cívica e de responsabilidade social que o ministro gosta tanto de socar em cima do público vão continuar. Como justificar de outro jeito aqueles R$ 20 milhões que eles conseguem gastar por dia? Além disso, o TSE etc., etc. faz o ministro (Barroso hoje, um colega amanhã) representar diante do público mais um papel de homem “importante”. No mundinho deles, é algo que não tem preço.

A única cura realmente eficaz, e provavelmente definitiva, para a desgraça que são as eleições brasileiras, é um conjunto de meia dúzia de providências simples como a tabuada — e que não têm nada a ver com a “Justiça Eleitoral”, ou com a palhaçada geral dos discursos em defesa das “instituições”. A maioria dos brasileiros capaz de entender que dois mais dois são quatro, e não vinte e dois, sabe muito bem quais são elas. O pacote básico inclui, logo de saída, o fim do voto obrigatório. Junto com a eliminação desta trapaça — vendida como “dever cívico”, mas criada unicamente para garantir a compra dos votos dos semianalfabetos e dos que não ligam a mínima para política — teria de vir o voto distrital. Pode se gastar horas na discussão dos detalhes, mas no fundo isso significa o seguinte: o Brasil é dividido em 513 distritos, o número atual de cadeiras na Câmara dos Deputados; cada distrito terá exatamente o mesmo número de eleitores, e os candidatos só podem concorrer em um dos distritos.

O voto distrital simplesmente implode o sistema eleitoral em vigor e elimina quase todos os seus vícios. Acaba a farra dos Estados que não têm eleitores, mas têm pencas de deputados eleitos com meia dúzia de votos. Acabam os candidatos que têm 2 milhões de votos no Estado inteiro, e elegem junto com eles picaretas nos quais quase ninguém votou. Acabam as despesas bilionárias das campanhas, pois os candidatos só podem ter votos num único distrito; não vão precisar de jatinho, comerciais de televisão etc., etc. Acaba a irresponsabilidade dos candidatos perante o eleitor: ao concorrer num distrito determinado, ele terá de assumir compromissos concretos para ser eleito — e o cumprimento das promessas que fez será cobrado na eleição seguinte.

Talvez mais do que tudo, o voto do brasileiro que tem título eleitoral em São Paulo ou em Minas Gerais passa a valer a mesma coisa que o voto do brasileiro que vive no Amapá ou em Roraima. São Paulo, por exemplo, tem hoje 70 deputados federais para uma população superior aos 45 milhões de habitantes — um representante para cada 650.000 moradores; o Amapá, com 750.000 habitantes, tem 8 deputados — um para cada quase 94.000. O voto do eleitor com título eleitoral de São Paulo vale sete vezes menos que o do eleitor do Amapá. Como pode funcionar um negócio desses? Para completar o novo sistema, a eliminação de quatro aberrações: o foro privilegiado, a propaganda eleitoral obrigatória no rádio e na televisão, o “suplente” de senadores e deputados e os “fundos” partidário e eleitoral — tramoias que só servem para encher a vida pública com gente safada.

O efeito deste conjunto de mudanças seria instantâneo — daria resultados logo na primeira eleição. Resolve o problema de governadores, prefeitos e senadores — ou do presidente da República? Não, não resolve. Mas resolve a Câmara de Deputados, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores — e isso aí já é um mundo. De mais a mais, não existe Executivo ruim com Legislativo bom — e nem Judiciário, quando se pensa um pouco. É por isso mesmo que os mais intransigentes defensores orais da democracia, das “instituições”, do “Estado de direito” etc. etc. etc. preferem pegar uma Covid tripla do que mexer no sistema eleitoral brasileiro. É com ele que ganham a vida. Não querem largar o osso.

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