Barroso, o ‘grande líder’ da oposição

Como está em um mundinho onde ninguém é capaz de lhe alertar sobre o despropósito de declarar que o Brasil vive uma ‘ditadura’, o ministro vai em frente

  • Por J. R. Guzzo
  • 12/09/2020 07h00
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Rosinei Coutinho/SCO/STF Luís Roberto Barroso O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso

O ministro Luís Roberto Barroso, a exemplo do que vem acontecendo com frequência alarmante entre a maioria dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), tem oferecido ao público uma sequência do que parecem ser acessos cada vez mais severos de excitação nervosa. Seria apenas problema dele, é claro, mas, por uma dessas coisas que só acontecem com o Botafogo e com o Brasil, o homem é ministro daquilo que tem a função legal de funcionar como a “Suprema Corte” do país. Nada de mais, na verdade, para um tribunal presidido até esta semana por um cidadão que foi reprovado duas vezes no concurso público para juiz, recebia uma mesada de R$ 100 mil da mulher advogada e escreve decisões num português tão ruim, mas tão ruim, que nem pode receber nota; é simplesmente incompreensível. Mas uma calamidade não diminui de tamanho pelo fato de ser acompanhada de outra – e Barroso, de uns tempos para cá, resolveu dar um notável upgrade, como se diz, nos teores de ruindade desenvolvidos até agora pelos colegas. É osso.

O ministro, ultimamente, parece ter convencido a si próprio de que é o grande líder da oposição no Brasil — e como vive 100% selado dentro de um mundinho onde ninguém é capaz de lhe alertar sobre o perfeito despropósito de achar uma coisa dessas, ele vai em frente. Por que não? Barroso é levado terrivelmente a sério pela mídia, pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e por outros colossos da nossa vida política, intelectual e “civilizada”. É natural que acredite, como o galo Chantecler da fábula de Rostand, que o sol só nasce porque ele canta. Seu mais recente manifesto à nação e ao mundo foi também um dos mais esquisitos do seu repertório. Falando num inglês de curso Berlitz mal concluído, naquele sotaque de brasileiro que tenta imitar o que imagina ser a pronúncia “americana” (era um vídeo do Instituto Fernando Henrique para uma plateia estrangeira), Barroso revelou que o Brasil vive numa dic-tator-ship, que o presidente Jair Bolsonaro é a favor da tortura e outros prodígios da mesma natureza. Levou meia hora para falar esse dic-tator-ship, assim mesmo, sílaba por sílaba. Quis parecer um tipo cosmopolita. Acabou sendo apenas cômico.

Como assim, “ditadura”? Para levar a sério por mais de cinco minutos a acusação do ministro, seria preciso que ele demonstrasse, com base em algum fato objetivo, por que o Brasil de hoje seria uma ditadura. E então? Quais os atos contra a democracia, as leis e as “instituições” praticados por Bolsonaro ou membros do seu governo? Em que data? Em que lugar? O governo enviou à Câmara ou ao Senado algum projeto que possa ser descrito como antidemocrático? Qual? Quando? E decreto — há algum decreto presidencial contra a democracia? Houve algum episódio, em 20 meses de governo, em que o presidente da República deixasse de cumprir alguma ordem da Justiça ou qualquer outra determinação legal? Talvez nenhum outro governo na história do Brasil tenha sido tão atacado pela imprensa como o de Bolsonaro — começou a apanhar antes mesmo de tomar posse e não parou até hoje. Durante esse tempo todo, não houve nenhuma tentativa de censura, aberta ou disfarçada, contra qualquer órgão de comunicação. Nenhum jornalista brasileiro ou estrangeiro foi incomodado até hoje, por nenhum motivo. O ex-presidente Lula, a título de comparação, quis expulsar do Brasil um correspondente americano que deu a entender num artigo que ele era bêbado: só não expulsou porque não conseguiu.

O que houve, e apenas uma vez, foi uma tentativa de ação legal contra um jornalista que escreveu o seguinte: “Eu quero que o presidente morra”. Mas e daí? A coisa não deu em nada, nem deveria mesmo dar, porque não é contra a lei querer que o presidente, ou qualquer outra pessoa, morra. O problema é apenas de quem escreveu, do veículo que publicou isso e dos leitores, a quem cabe julgar este tipo de desejo. Jornalistas são processados o tempo todo na Justiça, pelos mais diferentes motivos — não estão acima da lei, como se sabe. Nessas ocasiões, procuram um advogado e esperam a decisão da Justiça. Qual é o problema? Não há nada de errado com isso. Em compensação, Barroso despacha a poucos metros do ministro Alexandre de Moraes, que já censurou a revista digital “Crusoé”, proibiu que jornalistas de direita escrevessem ou falassem nas redes sociais, cassou perfis no Twitter, meteu a Polícia Federal em cima deles, apreendeu celulares, mandou depor, o diabo. Esse mesmo ministro conduz há um ano e meio um inquérito absolutamente ilegal contra quem ele considera divulgadores de “notícias falsas”. Quem é o censor da imprensa nessa história: Bolsonaro ou o STF?

Jair Bolsonaro pode ser um presidente ótimo, bom, médio, ruim ou péssimo, dependendo do lado em que você está. Lula e Luciano Huck acham que ele é péssimo. O general Heleno e Luciano Hang acham que ele é ótimo. O que ele não é, com certeza, é um ditador; não existe no mundo nenhum ditador que tenha sido eleito para o cargo por 58 milhões de votos em eleições livres, universais e democráticas, nas quais o único ato grave de violência foi a tentativa de assassinato que ele próprio, Bolsonaro, sofreu durante a campanha. O que Barroso está dizendo — e no fundo ele está dizendo só isso, mais nada — é que o presidente é antidemocrático porque elogia o regime militar. É um argumento de centro acadêmico em faculdade de segunda linha. E os milhões de brasileiros que acham exatamente a mesma coisa — e para os quais o que o ministro chama de dic-tator-ship foi um dos melhores períodos que o Brasil já viveu? O que Barroso sugere que se faça com eles? A propósito: Bolsonaro nunca chegou a fazer 10% dos elogios desesperados que o jornal “O Globo” fez ao golpe militar e ao regime que saiu dele. “Fabulosa demonstração de repúdio ao comunismo”, dizia a manchete da edição de 3 de abril de 1964 de “O Globo”. Durante os 49 anos seguintes as organizações Globo continuaram dizendo basicamente a mesma coisa — até que, em agosto de 2013, resolveram pedir desculpas por terem escrito o que escreveram. Tudo bem. Mas quem disse isso foram eles, e não o presidente. Por que o ministro não vai reclamar com a Globo?

Não vai porque seu interesse não é determinar quem foi contra ou a favor de coisa nenhuma, e sim aparecer como o principal condutor da “resistência democrática” no Brasil. É duvidoso que seus colegas de STF, onde o nível de estima mútua é um dos mais baixos que se pode encontrar entre 11 pessoas diferentes, concordem com a avaliação de líder que Barroso faz de si mesmo. O “Supremo”, notoriamente, é um lugar de muito chefe e pouco índio — mas ficar contra o governo, hoje em dia, é o que se chama de uma grande career opportunity, como diria o próprio ministro num dos seus sermões em inglês. Antes de lançar sua proclamação pró-democracia, Barroso já tinha se juntado, um pouco depois dos outros, ao bloco “Unidos do Genocídio”, formado no STF para denunciar Bolsonaro pelas misérias da Covid-19 — numa tentativa de resultado ainda incerto para esconder a responsabilidade dos ministros na decisão de entregar às “autoridades locais” todo o combate à epidemia. O fato é que — por ordem direta do STF — as 130 mil pessoas cujas mortes são atribuídas ao vírus estavam, do ponto de vista da saúde pública, entregues à custódia exclusiva dos 27 governadores e 5.500 prefeitos quando morreram. Como é que se vai apagar isso? A saída tem sido a negação sistemática e organizada da realidade — e acusar Bolsonaro de “genocídio”.

O STF jamais vai conseguir explicar o que fez, nem apagar a decisão que tomou. O governo federal não ficou afastado do combate à Covid-19 porque quis abandonar o campo; isso foi assim porque o STF mandou que fosse, em decisão oficial com força de lei. E agora? Quem deu todas as ordens durante o período de tempo em que as 130 mil pessoas morreram não foram os governadores dos Estados Unidos, nem os prefeitos da Alemanha; também não foram os marcianos. Foram esses que estão aí, e quem decidiu desse jeito foram Barroso e seus colegas. Os ministros dão a impressão de acharem que está tudo resolvido, porque a classe política, a mídia e a elite fazem de conta que acreditam neles. Pode ser. Para a população, no meio de toda essa conversa, o que sobrou de concreto foi o seguinte: a única participação do governo Bolsonaro no combate à epidemia foi dar os R$ 600 do vale de emergência a 60 milhões de pessoas.

Não há, na verdade, nenhuma surpresa nisso tudo. Junto com a sua denúncia contra a dic-tator-ship, o ministro Barroso afirmou em público que considera perfeitamente normal que cada ministro tenha direito a um funcionário para lhes arrumar o caimento das togas e puxar as suas cadeiras quando se sentam nas sessões plenárias. De acordo com Barroso, usar a toga é uma tarefa de altíssima complexidade; só mesmo quem não tem noção das coisas pode ignorar que a capa prende aqui, puxa ali, enrosca mais adiante. Em suma: é um perigo. O que iriam dizer se Bolsonaro falasse algo parecido? É melhor nem pensar. O STF, porém, é um outro ecossistema. O ministro Barroso faz lembrar uma daquelas gravuras de escravos negros que ficavam de quatro ao lado do cavalo para servir de escada ao sinhô na hora de montar. A diferença é que hoje é você quem paga o escravo.

Tudo a ver, não é mesmo? Acusar os outros, como sabe qualquer psicólogo, é um dos truques mais elementares e compulsivos dos que vivem num mundo falsificado: denuncie o próximo, sempre, de fazer aquilo que você faz e quer negar que fez. Barroso foi o advogado de defesa do terrorista italiano de extrema esquerda Cesare Battisti, hoje devolvido à Itália e cumprindo pena de prisão perpétua, no seu bem-sucedido esforço de asilar-se no Brasil para escapar da punição por seus crimes, durante o governo Lula. Battisti, que segundo Barroso era um “perseguido político”, assassinou quatro pessoas na Itália; antes de fugir para cá, foi condenado por 70 juízes italianos diferentes, e também pela Corte de Justiça da Comunidade Europeia. Segundo nosso ministro, então advogado, a Itália vivia naquele tempo, entre os anos 70 e 80, sob uma “ditadura” — isso mesmo, “ditadura”, uma acusação alucinada para um país que desde 1946 é uma das democracias mais impecáveis do mundo. Como era uma “ditadura”, não tinha o direito de punir um quádruplo homicida que matava pessoas porque obedecia a um “ideal político”.

Qual o crédito que se pode dar à acusação do ministro Barroso de que o Brasil vive uma ditadura hoje, quando ele acusou a Itália de viver uma ditadura em 1980? A Itália não mudou absolutamente nada de lá para cá; se era uma ditadura naquela época, então continua sendo uma ditadura hoje. Não faz nexo, claro — mas não é mesmo para fazer. Os ministros do STF, cada vez mais, estão tentando governar o Brasil sem terem sido eleitos para nada. Estão fraudando a vontade da maioria da população brasileira, expressa nas eleições democráticas de 2018. Perderam no voto — e agora se empenham em fazer o contrário de tudo o que o governo eleito se comprometeu a fazer junto ao eleitorado. Utilizam um truque básico: declaram que tudo aquilo de que não gostam é “inconstitucional”. Todo mundo fica quieto, ou bate palma. Eles não veem nenhuma razão para não ir adiante.

*José Roberto Guzzo é jornalista e escreve sobre os principais acontecimentos na política e na economia brasileira.

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