Em janeiro de 2020, Mandetta assombrava com chegada da Covid-19 e cloroquina já era pauta

Bolsonaro e Osmar Terra, que tinha bagagem preciosa em crises sanitárias, achavam que a pandemia seria parecida com o H1N1; todos erraram e continuarão errando, porque ninguém conhece nada do novo coronavírus

  • Por José Maria Trindade
  • 27/06/2021 12h00
Frederico Brasil/Estadão Conteúdo Ministro Luiz Henrique Mandetta com as mãos fechadas como se estivesse rezando. Ele usa camisa branca e um colete azul marinho do SUS. Fala em uma coletiva, está em cima de uma mesa de madeira, com um fundo azul e um microfone. Nenhum caso no Brasil, mas Mandetta afirmava com uma segurança que me assustava, que seria inevitável mesmo, uma questão de tempo

Ninguém falava ainda em pandemia. Era janeiro de 2020. Depois de uma entrevista com o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, começamos a falar de bastidores da política. Num determinado momento, perguntei sobre os rumos da sucessão presidencial e possíveis candidatos. Fiquei assustado com o relato de Mandetta: “Sucessão?! Esquece! Está vindo por aí uma crise sanitária sem precedentes e devo confessar que nem sei se terá sucessão. Vai interferir em tudo. Para ser mais exato, nem tenho a certeza de que em 2022 estaremos aqui conversando”, disse. Foi a primeira versão que ouvi sobre o novo coronavírus. Nem havia ainda o nome Covid-19 e muito menos o carimbo de pandemia. Por enquanto, nem era propriamente uma epidemia na China. Aquelas palavras acompanhadas de gestos e expressões faciais sérias me surpreenderam e provocaram um meio termo entre incredulidade e medo do ministro da Saúde, um médico experiente.

Ele estava chegando do encontro dos chefes de Estado mais ricos do mundo e ouviu relatos preocupantes e detalhados do vírus novo que se espalharia. “Este é pesado! E tem uma capacidade acima do normal para se multiplicar”, dizia com um ar de seriedade que assustava. Chegou a falar que o Carnaval estaria sendo discutido e aconselhou a não ir às festas e proibir os filhos de viajar ao Rio de Janeiro e São Paulo para comemorações. “É inevitável. Ele chegará ao Brasil em mais dias ou menos dias e será arrasador”, vaticinou. Isto era o início de janeiro de 2020. A segunda conversa sobre a pandemia foi com o ministro-chefe da Controladoria Geral da União, Wagner Rosário, próximo ao presidente Jair Bolsonaro, militar por formação e desde o início do governo muito ligado ao grupo influenciador no Palácio. “Ministro, ouvi relatos de que está vindo por aí um vírus que pode parar o mundo e que chegará forte ao Brasil”, falei. “Não! Já discutimos isso no Palácio. Será alguma coisa próxima do H1N1. Pelo que sei, trata-se mesmo de um vírus perigoso, mas logo, logo, um medicamento vai dar conta de contornar os sintomas e pronto. Vou falar aqui para você, a solução é simples e o remédio já existe. Não vai mudar nada. O presidente vai conseguir dar a volta nisso e se transformar em herói nacional, pode acreditar”, respondeu. “Que remédio é esse, ministro?”, questionei. “Não posso falar agora, mas adianto que é um remédio que já existe e usado preventivamente contra algumas doenças. Os militares usam quando viajam para algumas regiões.”

Era a cloroquina. O medicamente é usado normalmente pelas Forças Armadas como forma preventiva da malária, endêmica em vários Estados e também como tratamento do lúpus, uma doença inflamatória que leva o sistema imunológico a atacar os próprios tecidos. O que se sabia naquele momento era que o novo coronavírus provocava uma “tempestade de citocinas”. A síndrome provoca liberação exagerada daquela proteína e a resposta imune é exarcebada. A reação do próprio corpo era a grande preocupação, e testes estavam sendo feitos em laboratório com vários medicamentos, inclusive a hidroxicloroquina e a cloroquina, nomes que mais tarde se transformariam em palavrão para uns e salvação para outros. Ainda não havia a denominação de Covid-19 e nem havia sido declarada uma pandemia. Nenhum caso no Brasil, mas Mandetta afirmava com uma segurança que me assustava, que seria inevitável mesmo, uma questão de tempo. Estava acostumado a ministros que em momentos assim tentavam minimizar e negar. Ele não, exagerava e mostrava um quadro que ficaria grave.

Em fevereiro, a China construiu um hospital de campanha montado em tempo recorde. Acompanhado em tempo real, o hospital foi criticado por aqui pelo ministro Mandetta. Ele viu demonstração desnecessária de força e ineficiência técnica. Para o ministro, a China falhou ao deixar que o vírus saísse do país e colocou como exemplo o Estado de São Paulo naquele momento, com 85 “suspeitos”. O ministro disse literalmente naquela oportunidade: “O isolamento domiciliar tem a eficácia tão alta quanto estar no hospital para esse tipo de vírus que é transmitido por gotículas, gotas de saliva”. Ir para o hospital, só em caso de falta de ar, ou seja, no estágio mais grave. Na China, o primeiro hospital de campanha foi construído e depois desmontado. Um feito de engenharia. Uma obra de 25 mil metros quadrados, quase dois mil leitos, com enfermaria de isolamento, laboratórios e locais próprios para acomodação dos médicos. Começou a ser construído no dia 23 de fevereiro e em 10 dias estava pronto. Quatro mil trabalhadores em tempo integral, com mais de cem tratores e trabalho em três turnos. Três dias depois do início da montagem do hospital, começou a tragédia no Brasil, com o primeiro caso em São Paulo, um turista que chegou da Itália e trouxe na bagagem o estopim da crise por aqui. A primeira morte foi no dia 12 de março. A evolução foi rápida.

Sempre conversei com o deputado Osmar Terra. Preparado, médico e mestre em neurologia, me explicava a ação dos hormônios entre adolescentes e a forte influência na criminalidade e abuso de drogas. É dele a autoria da lei antidrogas que provocou um grande debate no Congresso, principalmente sobre a internação compulsória. “Na fase crítica da dependência – diz ele – a pessoa perde a referência e não tem mais domínio sobre a sua consciência e é preciso entrar a família e os profissionais de saúde para a internação”. Conseguiu aprovar o projeto que revolucionou o tratamento inclusive com as comunidades terapêuticas. Só que Osmar Terra tinha uma bagagem preciosa também em crise sanitária. Como secretário de Saúde por oito anos no Rio Grande do Sul, ele enfrentou a primeira pandemia do século XXI, a gripe suína, conhecida como o H1N1. “Será tranquilo”, me acalmava o deputado, ainda em fevereiro. No caso da H1N1, teve origem no México, chegou ao Brasil pela Argentina e pegou em cheio o Rio Grande do Sul. Osmar Terra investigou e chegou ao vírus, depois de mortes inexplicáveis com síndromes respiratórias, principalmente de profissionais de saúde. Fez cerco, mas o vírus pegou pesado no Sul, subiu para o Sudeste e perdeu força no Nordeste. Daí é que o ex-ministro da Cidadania e deputado Osmar Terra concluiu que a pandemia seria passageira e rápida. “O vírus cumpre o seu ciclo. Chega e infecta, cria imunidades e se vai”, era a tese da imunidade de rebanho. Ele pouco falava em medicamentos, mas dizia que era possível sim fazer o tratamento precoce.

Enquanto isso, o então ministro Mandetta assombrava o Palácio: “Presidente, nós vamos atravessar um desfiladeiro e muitos morrerão. De qualquer jeito. Cabe-nos andar devagar, de mãos dadas, com cuidado e chegaremos no final com um número de vítimas menor. Do contrário, se corrermos em estouro desenfreado, será uma carnificina, com pessoas morrendo ao nosso redor”. O presidente Jair Bolsonaro ouviu, coçou a cabeça e depois que o ministro saiu, brincou com assessores ironizando a fala e dizendo que ele estava exagerando, que só poderia estar louco. Não havia naquele momento nenhum brasileiro morto e muito menos o primeiro caso. O desfiladeiro continua. Estes foram os primeiros passos da informação sobre a pandemia que não é brasileira, mas muitos estão usando a crise para culpar governos e setores de gestão. Quem errou?! Todos! E continuarão errando, ninguém conhece nada do novo coronavírus.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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